sábado, 24 de novembro de 2007

Schopenhauer

Em casa da Francisca

Na solidão seca, sob o efeito do sereníssimo vinho do Porto e coberto com o silêncio aquoso da noite azeviche, o insano S., em êxtase, vocifera seu claro idioma de linho contra tudo o que seja fel e lepra.

S. que, na limpa e sempre enevoada vila de Torre Escura, e no velho sanatório de Santa Chuva, também é conhecido como Schopenhauer. Dizem os místicos que ele foi, em reencarnação passada, na biblioteca de Alexandria, o copista das obras raras do grego Kalicanthus. Considera-se que essa biblioteca tenha sido fundada no início do século 3 a.C.

Na vila de Torre Escura, destinada a ser o menor lugar do mundo, S. também escreveu um ensaio intitulado Hidráulica.

Outro dia a barca de Schopenhauer ancorou, com os velames mais rasgados do que nunca, no cais de pedra. A alma do velho filósofo estava frescamente perfumada pela verbena. Ao redor dele, gatos. Mexessem a cabeça os gatos e as árvores floresceriam todas ao mesmo tempo. Os mantras que, às vezes, S. pronuncia, colam-se à parede branca e ficam ali, manchas nupciais de música.

Diante desse muro branco escalavrado, à sombra dele, Schopenhauer adormece e sonha que está acordado no colo da sibila Lythia – sonha que chove lá fora uma espécie de oiro velho – enquanto ela o acaricia com o ramo do mistério. E que mistério seria?

Em casa da Francisca, onde S. vai aos domingos, a biblioteca é escura e estreita, com gaiolas de canários e vasos de plantas; algumas estantes de pau preto acondicionam grossos fólios de convento e de foro, e até um anjo pode ser visto que observa, pela janela escancarada, o laranjal.

Sob a imensa curva deste céu, nesse primeiro dia do mundo – origo et fons – eu, Schopenhauer – passo os dedos pelos volumes da História genealógica, mas me detenho horas no Vocabulário, do muezim turco Sitar al-Camaã, depois rabisco numa das páginas desse livro o copo cheio de gérberas negras.

Aí, quando acordei, flagrei que os olhos límpidos e marinhos da sibila Lythia pulavam o muro.

Por vezes, o óbvio está errado e o insólito é verdadeiro.

Groucho Marx, em 1977, ano em que morreu

Ver Groucho Marx

http://www.youtube.com/watch?v=vy3FnA3mJHE&feature=related

Catherine Deneuve


Quino


Fernandes

Borges

Man Ray


Plantas bravias e a velha voz do vento ressuscitam sibilas, porque o belo é apenas o limiar do terrível. Enquanto o barco camaroeiro embate numa língua de areia à entrada da foz assoreada do rio, um (l’olors) olor de açucena na neve afasta o azar e o (ennui) marasmo. Kakekotoba (a palavra na palavra) é a passagem de uma palavra pelo oco de outra palavra nela esquecendo seu perfume: pois as palavras têm isso de cruel – recusam-se àqueles que as respeitam e se atiram aos pés dos que as reverenciam pelo que poderiam ser, não pelo que são. A serenidade de um verso latino. Na casa de Menandro angst morre nas pedras. Eu escuto orvalho no olho do peixe que paira no aquário da casa antiga, casa antiga que os vendavais circundam. Uma ramagem de sutis idílios faz sombra na parede branca da casa de Menandro. O sol marinho dá nas calhas e nas venezianas. Menandro desce os degraus de pedras soltas, nos galhos do salgueiro vai deixando blusa, calça, sapatos, chapéu, cachimbo. No mais mineral das profundas prosas altas, onde a viola de chuva se esconde, lá onde as piscinas ondulam tempestuosas, quando o escarcéu das águas se avulta, lá a voz selvagem e as iguanas sedentas, lá, na voz, se aclara a palavra nunca vista e a obsedante garoa rega a pedra da elegia. No alto-mar de transparente massa cristalina, quanto mais ao alto-mar de silêncio perto, mais a voz vai aclarando, se antiga é a alma que se vislumbra, assim das profundas mostra claro e radiante o mineral das prosas altas que serena o que, nas iguanas sedentas, há de árido. Oculto na ramagem do que rascunho, respiro metade xamã, metade pesadelo.