quinta-feira, 6 de dezembro de 2007


O último dia de Al Capone

E ter coração já não é metade do caminho?
Guimarães Rosa


Poucos depois, num Domingo de Ramos, morreu Al Capone, com os testículos estraçalhados no ventilador. O que foram fazer ali? Chora, leitor, se tens lágrimas, por este Al Capone e seus testículos perdidos. Os mafiosos quando envelhecem, mansos e peludos, com as bolotas nas virilhas, só pensam em nabo e onde colocar o nabo. Como todo mafioso termina só – o nabo acaba sendo de quem convive com o nabo, – diria Lucrecius, na Roma antiga.

Al Capone não morreu súdito nem vencido. O esforço que, nas últimas semanas, fazia para abrir a torneira não durava muito; a dentadura despencou outra vez no lavabo; o rosto conservou porventura uma expressão pálida de tísico.

Escrevo aqui o fim de Al Capone – o scarface –, que adoeceu, também, por causa do prego que enfiou no pé; ganiu infinitamente. Antes de findar a agonia, que não foi curta, Al Capone pôs coroa gelada na cabeça, – coroa que, na realidade, era apenas uma tosca bacia de alumínio, dessas usadas para guardar roupa. No seu último dia de vida, Al Capone ainda tentou pegar o vento, pegou em nada, levantou nada e só ele pensava que a bacia de alumínio em sua cabeça era uma coroa imperial, de ouro maciço e cristais do oriente.

Amanheceu morto na rua, com o silêncio de uma sereia enterrado no tímpano, o que é muito mais terrível – o silêncio dela. Antes houvesse escutado as cantatas de Bach.

Eis, para sempre morto, o Al Capone que chega, neste milésimo de segundo, às regiões infernais. O carrasco Göring, escolhido por Satanás para cuidar de Al Capone, não quis nem conversa com ele e, atendendo à letra fria da lei do geena (Do grego géenna,és: “lugar de tortura”), ou porque estava encharcado de rum, desferiu machadadas a todos os lados: Al Capone foi se desviando, Göring fincava o machado no ar, Al Capone fugia em direção ao nada, ao inferno – inferno este que o dogma sujou –, e que é, em vida, já ter a alma morta. O carrasco Göring continua desferindo machadadas que zunem no exíguo espaço do calabouço onde Al Capone não tem um minuto de sossego. Göring dorme apenas 1 hora por dia. Al Capone aproveita e dorme também.

Quando Göring acorda é aquela correria atrás de Al Capone que já se tornou mestre na arte de se desviar de machadadas. Mas Göring está envelhecendo a olhos vistos. Para ele não murmuram as sombras do amor. O pesado machado machuca-lhe as mãos delicadas de diabo. Göring sente sono, um sono imenso, deita no catre, depois de ter encostado o machado na parede.

Göring, hoje, não vai dormir apenas 1 hora. Göring nunca mais vai acordar – o coração apodreceu.

E, Al Capone, sem caber em si de tanta alegria, respira pela primeira vez no inferno, livre de seu algoz, este Göring morto para sempre. Al Capone, exausto de tanto de não dormir, caiu em sono profundo e sonhou que estava deitado num sofá – à direita a mesinha de chá, à esquerda o rádio – na parede à direita havia um quadro de Rembrandt – nele, o mestre holandês pintou a luz da manhã que, não sendo Deus nem nada, é apenas a presença da luz – palavra esta criada, segundo o Dicionário Houaiss, no ano de 1041 a.C.

Miran


Klavdij Sluban


A casa de vidro

Pela primeira vez sozinho no soturno casarão de meus antepassados, não posso abandonar essa barcaça ao vento nem esconder esse corpo que furei a faca nem mijar atrás da canoa nem me esconder do rumor da vida alheia, mas posso olhar a vida de frente e, ao meu olhar, os porcos fedorentos se transmutam em chuvas, chuvas de pérolas no assoalho do soturno casarão de meus antepassados.

Do outro lado da ilha de Pedra eu moro numa pequena casa de vidro; para Walter Benjamin, a suprema liberdade era viver numa casa de vidro. Silêncio, quero passar onde ninguém passou, silêncio.

O corcunda só se corrige na cova.

Greta Garbo na chuva

Eu, sentado na poltrona de uma sala vazia, observo que a luz se foi ao sabor do vento. Um grande silêncio e as persianas. Escurece; recordo que no dia que passou houve alegrias numerosas: terraços, vime, rangidos, sonolência vivificante e, creiam, houve até Greta Garbo na chuva.

Como esquecer essa tarde em que a observo, sob aquelas árvores esguias, inteiramente molhada de chuva – ela, Greta Garbo – os cabelos escorridos sobre os lábios, a saia colada às coxas.

Francis Bacon


Uma temporada
no leprosário de Santa Água


Fui internado ontem no leprosário de Santa Água. Sofro, aqui, o perverso gozo da derrota inteira, misturado a cabaças com restolhos de sopa e a esta cabeça de bagre – o Diretor-geral do leprosário – o senhor Kault – que se julga gênio, quando o único que pode ser é cabeça de bagre –, e só a tempestade o curaria. O Diretor-geral do leprosário nunca ousa vencer as palavras ou quebrar a gramática, por isso crê na gramática e crê em Deus.

Para continuar inteiro em meio ao vento que espalha os incensos, apaga as velas, afunda os navios ao largo, finjo, esquivo-me, como se eu fosse barata com caspa na sobrancelha e fedesse à carniça.

Neste inferno onde respiro, dia-a-dia, nacos de mim caem no quarto, no banheiro, no pátio do leprosário de Santa Água. Aprendo, com certa dificuldade, que apenas o silêncio permite desvelar a parte interna de cada coisa contemplada. Depois que sair do leprosário, recordarei com saudade do preto velho Oriki, da monotonia de sua vida cotidiana. Ele será, para mim, a recordação dos amores que tive ou das ondas que nunca foram de ninguém.

O preto velho Oriki – os olhos carcomidos, a língua sucumbida – aprecia lundus e batuques do Congo –, dança o próprio vazio, traz uns olhos a pensar para dentro coisas de fora, e a minha alma se aclara com essa dança da chuva que o preto velho Oriki espalha pelos corredores gelados do leprosário.

Não tenho próximo de mim a figura da ninfa nua no cavalo de água. Será, talvez, por isto, que eu fique horas a observar o preto velho Oriki dançar? Se o motivo for a falta da ninfa nua, não mereço piedade nem nada. Este preto velho, leproso, nem sabíamos que pudesse guardar na alma a ninfa nua. Agora ele é, por fora, o que sempre foi no íntimo.

No escritório do leprosário de Santa Água, o senhor Kault coça uma chaga na clavícula. Já sabe que contraiu a lepra, que mora numa casa de vidro, com escorpiões vivos que podemos ver daqui. Os telhados da casa de vidro fedem a urina. Sim, a lepra nada sabe da sombra da oliveira ao meio-dia. Sabe de jardins escorraçados, de câmaras de gás, de corpos tocados pela cinza das horas. Por causa disso, neste leprosário de Santa Água, não sou capaz, ainda, de um sentimento que dure como duram as pedras – serenas – na alma. Tudo em mim é outra coisa: uma impaciência de tigre atrás da neblina, um desassossego crescente e sempre igual, que me faz vociferar que tudo me interessa e nada me prende. Leio um poema:

Um livro
Um livro tem
Um livro tem de ser
Um livro tem de ser um
Um livro tem de ser um machado
Um livro tem de ser um machado para
Um livro tem de ser um machado para o
Um livro tem de ser um machado para o mar

Um livro tem de ser um machado para o

mar gelado

dentro
de
nós

A respiração sufocada do preto velho Oriki; não a escuto, estou pensando em outra coisa, estou pensando, por exemplo, que nada deveria escurecer o desejo, e que nada nunca destroça as águas do oceano.

Hoje é domingo, não recebi visita. Aqui, nesse leprosário de Santa Água, se narro obscuramente a minha vida sem história, é porque nela só houve esta casa de vidro e, aos escorpiões que vejo nada digo, nada tenho que dizer.

Gustave Doré (1832-1883)


Clitemnestra

Eu afogo Agamênon na banheira e reafirmo o preceito cáustico:
– Não chame Agamênom de feliz, até que ele esteja morto. E agora – morto –, Agamênom está feliz?

Claro que, morto, ele não sabe mais da sombra da oliveira ao meio-dia, e nunca mais fala quando quer falar, nem quando querem que fale. Agamênom discursa às paredes de seu túmulo, coça da perna um verme, pensa, se é que um morto pode pensar, que lá fora ninguém é feliz, mesmo vivo.

M. C. Escher


Safo

Mais que à beleza dos jovens eu amo a beleza das meninas, que ocultam seu sexo no interior. Quando se despedem da ilha de Lesbos, eu digo a elas:

– Não vos esqueçais do martim-pescador.

Luis González


Da barca Nautikon, que paira acima da enseada, Mister Magoo observa, com o periscópio, as imensas curvas de cristal que o vento esquece nas telhas, nas janelas e, por último, o vento dá um rasante e paira – invisível – sobre a cama da gueixa Yuki – belo animal selvagem.

Outono por dentro e por fora das casas e ainda é manhã na baía da Babitonga.

Quem vislumbre a barca Nautikon – e no piso livros de Schopenhauer e Hilda Hilst espalhados – quem a vislumbre flutuando rente a uma grande nuvem barroca, cuida que Mister Magoo espia, pela escotilha, aquela princesa nua e adormecida; uma princesa nua de neve que, ao virar-se no lençol, desvela uma quieta água; mas, se observo com mais acuidade, posso dizer que Mister Magoo vê a barroca nudez e o serpentário de cabelos da gueixa Yuki – longos, negros.

Quem teria sido Mister Magoo antes da primeira respiração? Nada. Que é neste exato momento? Marujo da barca Nautikon.

Olha para o templo de Khajuharo que traz em si – construído, mármore por mármore, na alma; olha para a toalha no banheiro (uma toalha com inscrições de um íbis nevando no outro mundo, que lhe ofereceu o filósofo Mo tsi); olha para as casas e para as canoas na orla da baía, para o quintal repleto de cerejeiras, para as mulheres que molham os dedos na água benta e se ajoelham, para as barcaças e veleiros e para as nuvens; e tudo, desde o sobrado onde respira a gueixa Yuki até a toalha onde o íbis neva, tudo se encontra imerso numa bachiana de Villa-Lobos ou numa frase de cristal.

Ivan Pinkava


A taciturna
(A partir de um texto de Paul Celan)


Quando vem a taciturna e quebra os canos, a casa fica sem água; a taciturna destroça rosais, canteiros de gérberas e a Casa do esquecimento exala um olor verde-mofo.

Para ele a taciturna verte a lágrima no escorpião; a taciturna sopra na pele; para ele ela enche os copos de sol; para ele ela murmura as sombras do amor.

Ele, da varanda da Casa do esquecimento, atira flechas em qualquer um: quem passa à frente da farmácia, flecha no ombro; quem sai da igreja dos Beneditinos, flecha na testa; quem entra no cartório, flecha nas costas; quem sai da lotérica, flecha no pé.

Ele arranca do peito o coração para a noite porque deseja a rosa.

A taciturna arranca a noite do coração porque deseja no peito a rosa.

Ele ela: olho no olho, no frio, presos nas profundezas, somem de si para sempre.

Ele:
– Escuto, o machado floresceu.

Ela:
– Escuto, o local não é nomeável.

Ele:
– Escuto, a chuva que a tudo observa cura o enforcado.

Ela:
– Escuto, falam da vida como único refúgio.

Ele ela transam debaixo das laranjeiras, onde o ar é puro e o céu alto e sem nuvens.

Marilyn Monroe


Quino


Matisse


Krin van Noordwijk


O açougue de Werther

A primeira vez que entrei naquele estabelecimento – mais conhecido como Açougue de Werther – percebi mesmo algo diferente. Eu lhe solicitei 1 quilo de carne e ele olhou furtivamente para uma edificação logo em frente: o Orfanato das Meninas de Santa Teresa de Ávila.

Na calada do sereno, entre um gole e outro de conhaque, Werther afia faca de matar porco.

Duas horas da madrugada, Werther salta o muro do orfanato.

As meninas dormem, dormem profundamente.

Clara Whitcomb


Axaxaxas mlö

O título desta narrativa – Axaxaxas mlö – pode, à primeira vista, parecer incoerente e passível de uma correção tipográfica.

Até as mulheres foram banidas da ilha de Axaxaxas mlö, que cultua uma economia de sentimentos, o que a faz parecer fria e calculista ou mesmo uma ilha insuportavelmente tediosa. O certo é que, para Axaxaxas mlö, são deportados ladrões e estupradores.

E, sem dúvida, também aqueles que não praticam a pureza com ferocidade.

Dae Woong Nam


Angelo (Pal Funk), 1935


OS OLHOS DO ADORMECIDO

Esfinge ao sol, enquanto durmo.
Se eu acordasse agora, então o quê?
Um olho aberto, outro fechado,
a esfinge sonha com meus olhos.

Meus olhos nessa luminância
dos olhos da esfinge de cal.
Meus olhos são alísios, alívios
nos olhos da esfinge no pátio.

Esfinge apagando altas estrelas,
que depois meus olhos reacendem.
E por que esfinge, por que olhos?

Seria mais simples não haver vida
– nenhuma palavra –
seria mais simples não morrer.

Cortona


Édouard Boubat


Essa matéria fina de toda a certeza– música do pensamento –
é a palavra,
e com ela pronunciamos o indizível de sermos céu,
pêssego,
caligrafia.

Com essa fina matéria de toda certeza
toco a fímbria do ar,
me despedaço sete vezes,
sou menos que o vento,
oração numa varanda,
sou o que eu desejo.

E o meu desejo,
se o pronuncio com essa matéria fina de toda a certeza
– a palavra –
o meu desejo é que acordemos num quarto novo,
alguns cacos pelo tapete,
uma estrela fervente em cada mão.