sábado, 8 de dezembro de 2007

George Seeley


A MORTE DA IMPERATRIZ VIÚVA BIWA

Vida e morte é uma ida-e-volta.
Quem pode saber se morrer aqui
não é nascer em outro lugar?
Lie Tse

A imperatriz viúva Biwa morreu
logo ela que se lavava com leite de peixe
penteava os cabelos no vento
logo ela morreu
medo tinha a viúva Biwa
medo dos vermes que a corroessem
medo da laje tumular
que fizesse sombra à sua pele
branca

Magritte


O SONO DAS PALAVRAS

A leitura é que acorda as palavras:
as sonhadoras do sonho.

De flauta doce em punho entro no quarto
– as palavras ali belas adormecidas:

sonhariam com gatos e que uma luz quer,
com palavras, conhecer outros lumes?

Renque de árvores junto de uma parede
é bom para acordar palavras.

Chagall


KOAN MARINHO

Mar de primavera –
o dia todo
lentamente ondula.

Buson

Issa e seu poema sobre a solidão
entram no mar.

Issa se molha,
o poema pula um céu neste silêncio:
azul pra todo lado.

Derain


NUVENS ACIMA DO PARQUE DE SARNATH

Qualquer abismo, sagrado:
– nele habita o nada.
E se pode ser nada, pode bosque vazio.
Bosque vazio tua infância, bosque vazio
teu primeiro rabisco no caderno
de folhas alvas, carne de salmão?
Foi aqui no bosque vazio que o sonho
viu a vida pela última vez.

Stuart Rome


A SEDE DO FILÓSOFO MO TSI

O filósofo Mo Tsi,
de tanto roubar com binóculo o trem que passa

com seus vagões de papoulas,
de tanto fisgar o aroma delas,

o filósofo Mo tsi esquece que sua língua é d’água:
sede a engole.

Gustave Doré (1832-1883)


ORIGEM DA BARCA NAUTIKON
(Os quatro elementos)

Observo a barca Nautikon
– antiga de matéria –
sob quatro raios:

1. Algo é!
Sensação: Nautikon calcária,
rasa de água, ampliada de secura.

2. O que é?
Pensamento: Nautikon sem imagens,
enodoa o vazio com mais vazio.

3. Devo aceitá-la ou não?
Sentimento: Nautikon, aceito-a,
eficácia nua, mais silêncio que fogo.

4. De onde e para onde vai?
Intuição: Nautikon vem da exatidão que a construiu.
Não vai, permanece no ar.

Laszlo Layton


INFÂNCIA

Diz o menino com voz de concha:
– Estou cansado de todas as palavras.

Lambuzado a melancia,
esfrega as mãos na camisa branca e continua:
– Me adianto, invento os outros. Não quero pensar
ao acariciar.

E para o menino o que sobra depois de tudo?

Um nublado reino,
uma moeda de ouro no fundo do poço,
uns espelhos profundos.

Édouard Boubat


A EXISTÊNCIA DAS ILUSÕES

Por tanta coisa havida e sonhada,
uma beleza verga a árvore de ilusões.

Cartier Bresson


NO QUINTAL DE UMA CASA GREGA

Pavão na escada:
minha sombra risca um rio na sua cauda.

Anônimo
E O TER NÃO PASSA DE UMA SOMBRA
SE NÃO TIVER A POSITIVIDADE DAS ILUSÕES

A vida só é possível reinventada".
Cecília Meireles

Al-Jah-Alli observa a sombra dos cântaros na varanda:
seu palácio faz sombra no rio Salm.

Al-Jah Alli anda e seu corpo ensombrece
os canteiros de rosas brancas.

Al-Jah Alli retorna à varanda,
bebe um copo d'água:
o coração não faz sombra em nada,
apenas se ilumina de uma ilusão consentida.

M. C. Escher


O final de um coro de Eurípedes

Os livros da Biblioteca de Alexandria – na calada da noite –, conversam entre si no incessante risco que é existir nessa biblioteca que será incendiada amanhã. Aqui misturam-se as histórias de uns livros com as de outros e, como divindades que deliram, os livros aguardam serem lidos.

Eu confesso que, às vezes, também penso que sou uma divindade que delira nos corredores da Biblioteca de Alexandria. Na verdade não sou divindade, talvez um monge copista. Chegou ontem, ao diretor da biblioteca, um pergaminho sujo com os dizeres escritos a carvão: “O livro perdido de Tácito”. Eu o copiei cinco vezes; é um breve opúsculo. Cinco horas da tarde – aqui estou – e a Biblioteca de Alexandria ainda não foi incendiada pelo califa Omar.

Eu durmo num dos cômodos da biblioteca. Cada copista tem direito a um quarto rústico: copo d’água, livro de orações, rosário.

Quem não se cuide acaba enfermo pulmonar, tanto é o frio que silva nas galerias, entre as prateleiras repletas com 800 mil obras raras. Indizível a melancolia que paira nesse lugar e vou andando – há lugares onde nunca entrei –, vou andando com o candeeiro na mão, avisto à esquerda a porta que dá para o vestíbulo ensombrado. Dentro dele duas estantes com livros empoeirados; os títulos são interessantes, alguns canhestros, outros grossos e há os finos e, sobre uma cadeira, avisto aquele que dizem ser o mais belo livro do mundo, e se intitula: O final de um coro de Eurípedes.