sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Ver peixe com face humana.

http://www.youtube.com/watch?v=gTVwgvqhwn8&NR=1

A VIGÍLIA DO SABONETE

Em algum lugar
salta
um homem
do trem d'água em movimento
atrás
de
uma
estrela
e
se despedaça
numa
torre
de
sabonete

Magritte


Acesse agora o blog
de Fábio Brüggemann:
o único crocodilo,
vindo diretamente do rio Nilo,
que escreve.

www.bloguedobruggemann.blogspot.com

Assim como o Fábio Brüggemann minha metafísica é mais pata
que o pata que a pariu
quem primeiro?:
antes da pata a pata?
que patada!

Comentário de Vinícius Alves ao preceito búdico:

Antes que a primeira vela se acendesse,
a vela já estava acesa.

Brett Weston


Breve carta e um pequeno conto de K.: “Lucana querida, aí um pequeno esboço de narrativa escrito à beira do ferro-gusa e de ramos sombreando arroios:

A BANHISTA E O RINOCERONTE
“Uma névoa rósea e palpitante de ninfas
--- nereidas, dríadas, oréadas, napéias coleantes,
oceânides melodiosas”.
(Júlio Dantas)

Banhista. Pessoa que se banha em mar, rio, piscina etc. Pessoa que se submete a banhos medicinais. (Dicionário Aurélio)

Rinoceronte. Do latino clássico rhinoceros, otis). Mamífero ungulado, perissodáctilo, ceratomorfo, rinocerotídeo, maciço, pesado, de cabeça muito alongada, com 1 ou 2 chifres, situados, neste caso, um após o outro. Cauda curta, os quatro pés com 3 dedos de cascos separados, boca pequena e lábio superior alongado. Atualmente existem 4 gêneros, com cinco espécies: a indiana, com 1 chifre (Rhinoceros unicornis), a javânica (R. sondaicus), a de Sumatra (Dicerorhinus sumatrensis) e duas africanas (Diceros bicornis e Ceratotherium simun). (Dicionário Aurélio)

“Eu sei que a banhista não existe, mas entre duas ondas do mar a banhista mergulha e a respiração dela – napéia coleante – se a imagino, existe junto do pomar e do rinoceronte. O sono íntimo da talássica nereida me doura. Rente a um muro de Cnossos, as duas ondas do mar nunca secam, ressuscitam molhadas no sonho da banhista. Ossos do rinoceronte secam, não ressuscitam nunca mais, como nunca mais ressuscitam o fel e o urinol. Assim os arcanjos nunca extraviam suas blusas d’água e a banhista – oceânide melodiosa, napéia coleante – respira agora na Casa da névoa”.

Eri Skyrgianni

Hidra
Lucana grafita a carvão, nos muros gretados que circundam a Casa de Água, a pedra de toque de Valéry: “Devemos ajudar a Hidra a esvaziar seu nevoeiro”. E pensa consigo a silenciosa Lucana: “Lutuosa Hidra que ressona no lodaçal. Hidra imersa no nevoeiro. Sal e pregos vazam de sua alma sem aragem e nem a tempestade dissolve a Hidra. Com óleos bentos ou com o fio de ouro da consciência esvaziar o sono que a coroa e coroá-la de chuvas. Talos de capim, águas da cacimba pode que a destravem dos arcos-de-ferro que a ressecam. A respiração da Hidra embaça o vidro. Os nevoeiros da Hidra: calafrio: crosta: batráquio: se os curarmos com a benção que relaxa, a tempestade aroma-se de ervas finas”. Singramos à praia de Pinheiros-bravos. O céu nunca naufraga: a brisa que nos envolve traz a essa alta árvore em nossos tímpanos uma esparsa de Josely Vianna Baptista:

e nada é imagem
(teu corpo branco em mar de sargaços)
nada é miragem
na tela rútila das pálpebras.

Baron Raimund von Stilfried, 1880


A chinesa
Sob a palmeira Lucana escreve uma carta a K.: “Em minha Casa de Água, meu caro K., eu penduro a chinesa de cabeça para baixo. Sempre que a torço, dela vaza água. Penduro a chinesa de cabeça para baixo. Eu que mordo conchas tão finas. A chinesa, de cabeça para baixo, morde conchas comigo. A brisa esvoaça a frágil chinesa, que não entontece, mesmo de cabeça para baixo. Eu nem diria que ela respira. Eu nem diria que ela é morta. A toalha secando ao vento estival: a efígie da chinesa na toalha de banho”.

Joel-Peter Witkin


O porco-demônio
A nuvem arrepia-se de febre até às ondas da branca espuma. Lucana folheia o livro do místico Sri Aurobindo: “Não existe mortalidade. É somente o Imortal que pode morrer. O mortal não poderia nem nascer nem perecer”. Lucana agora anda, mergulha, vai ao fundo do mar – la lengua del alma es la pluma –, Lucana anda mais, singra o areal com os cabelos pensos e o pulmão opresso. Mergulha na vastidão molhada. Afunda: onde está o invólucro calcário de uma concha, está o fundo salgado e estranho do mar ondulando mar. Com as mãos consegue arrancar de cima de si as águas e, Lucana assim imersa no vento, já sabe que a língua é de água viva e que a maré vazante afasta o porco para longe daqui. A alma é fúria grande e sonorosa, a coar sombras da ânfora proibida. A mais funda sombra é o porco-demônio que pisca, nervoso, os olhos incrédulos, ri, treme-lhe a mão esquiva, o braço enlouquece, a perna adormece, o pé medita, o tronco dança maculelê, mexe-se na cadeira, levanta-se, senta na cadeira, pisca, cai-lhe o chapéu, tomba o maço de revistas “O Cruzeiro”, ergue o maço acima da cabeça, fala com a parede, com o gato d’água, discute com a sombra do próprio cabelo no lajedo, tenta torcer o pescoço de pedra e chora de rir até os dentes caírem no chão. O porco-demônio (daimónion) é escorregoso, respira cloacas e, claro, nunca é sereno. Tem vezes o daimónion pode regar anêmonas com a marca viva que é, em sua voz, o sobrenatural, ou pode fingir que é pároco da pequena igreja do Carmo. Durante a distribuição das hóstias, pára tudo, as hóstias esquecidas no altar e, com o gesto supremo de quem vai cometer uma barbárie, cata no bolso da batina um pente e passa em seus cabelos de bolha de sabão. Basta um leve toque da ponta do pente em qualquer parte da cabeça do pároco e – catapám – o pároco explode em plena igreja e só se podem ver os nacos dele sujando os fiéis. O deus e o porco-demônio: o punhal de prata na água do poço. O porco-demônio é o punhal de prata que o Deus-água-de-poço dissolve lentamente. Para se distrair, o porco-demônio vai ao hall do Restaurant Palace e, ali, entre plantas exóticas e lustres de cristal, saboreia minguados caranguejos. Contrariado, ele ironiza: “Sempre que provo estes caranguejos, evoco os lagos pitorescos da Suíça”. O garçom estranha: “Perdoe-me, senhor, mas na Suíça nunca houve caranguejos”. O porco-demônio acrescenta, apontando com absoluto desdém, o prato: “Aqui também não.”

Anônimo, 1905


Água de Lucana coroa a penumbra de K., que confessa: “Encontro, num dos becos aqui de Villa da Concha, dias meus vorazes que eu havia esquecido nas nuvens, dias mais ligeiros do que cervos e ventos que somem entre sombras e arvoredos”. Enquanto olha as amendoeiras da rua onde mora, K. tenta esquecer que somos cadáveres esfolados com o céu ou cadáveres molhados com cúpulas de pedra. Porco: por dentro, o corpo dele é tão parecido com o do homem, que deveria ser utilizado nos hospitais no estudo de anatomia. Desde aquele domingo K. é perseguido pela impressão de que as cinzas o espiam. Para curar o porco em seus cancros, lava-os com láudano, bálsamo de ungüento, desinfetante lisol. Para curar o Vazio K. passa a língua

no salitre perfumado do pequeno bosque
no pequeno bosque de ciprestes passa a língua
no
pequeno
bosque
de
ciprestes