quinta-feira, 13 de março de 2008

Paul Klee


Ver o peixe-flor

http://www.youtube.com/watch?v=vG47vfCkIF8&feature=related

Quino


Hokusai (1760-1849)


Ver o único vídeo do tão procurado Deus
andando disfarçado
na neve

http://www.youtube.com/watch?v=NSJnppzwIIM&feature=related

Édouard Boubat


MULHER-LAGARTO

Não poderia mais viver em solo fértil. O corpo lhe passara uma descompostura. O deus. O umbigo. A erva-mate. A morte. A vida suburbana. A eternidade. Perdera os três filhos e esta era uma afirmação sem fim, com um milhão de patas, e pegajosas.

Gritam os insetos, na solidão dela. Gritam os lírios. Grita a surdez da solidão. Tudo grita para quem perdeu a alma de três filhos, em três diferentes invernos. Era um afogado, um atropelado e um adoentado.

Olhar para que lados? Perguntar o quê?

(...)

Aprendeu a sorrir como os animais selvagens, com um esgar solícito de dentes pontiagudos. Não sabiam, mas a mulher-lagarto, órfã de seus filhos, havia se tornado capaz de matar.



Do livro de contos Casa das Feras, de Márcia Bechara,
publicado pela 7 Letras

Arlaud, 1920


O SEGREDO

Não devo pensar.
Antes de tudo sentir e ver.
E quando de ver se passa a olhar,
acendem-se raras luzes
e tudo adquire uma voz.
Assim, descobri, de repente,
em um segundo fulgurante,
que existe uma Dança das Árvores.
Não são todas que conhecem
o segredo de dançar ao vento.
Mas as que possuem a graça
formam rodas de folhas ligeiras,
de ramos, de brotos, em torno
de seu próprio tronco estremecido.
E é todo um ritmo que se cria
nas folhagens; um ritmo ascendente
e inquieto, com encrespamentos
e retornos de ondas, com brancas
pausas, respiros, vergamentos,
que se alvoroçam e são
torvelinho, de repente, numa
música prodigiosa do verde.
Não há nada mais belo que a dança
de um maciço de bambus na brisa.
Nenhuma coreografia humana
tem a eurritmia de um ramo
que se desenha sobre o céu.
Chego a me perguntar às vezes
se as formas altas da emoção
estética não consistirão,
simplesmente, num supremo
entendimento do criado.
Um dia, os homens descobrirão
um alfabeto nos olhos
das calcedônias, nos pardos
veludos da falena, e então
se saberá com assombro
que cada caracol manchado
era, desde sempre, um poema.


Poema de Alejo Carpentier, traduzido por Marcelo Tápia


Maiakóvski
A NUVEM DE CALÇAS
(fragmentos)

(...)

Ternos amantes!
Vós competis com o violino
e com timbales competem os boçais.
Mas como eu não podeis fazer?
Ser todo lábios, sem pesado corpo?

Das vossas salas de fausto,
do clube angelical membros preclaros,
vinde escutar, vinde saber.
Vinde, vós, que lábios folheais
como a cozinheira um livro de receitas.

Se quiserem,
serei apenas carne louca
e, como o céu, mudarei de tom,
se quiserem,
serei impecavelmente delicado,
não serei homem, mas uma nuvem de calças!

Não acredito que haja uma Nice florida!
Hoje de novo canto a glória
dos homens que o pecado fez malignos
e das mulheres gastas como um lugar-comum.

(...)

Que me importa Fausto,
deslizando com Mefistófeles
em foguetões feéricos no solho célico encerado!
Eu sei
que um prego no meu sapato
é mais terrível que a imaginação de Goethe!

Eu,
o de lábios dourados,
cujas palavras
renovam o espírito
e festejam o corpo,
vos digo:
a mais insignificante partícula de vida
tem mais valor que tudo o que escrevi.


Maiakóvski em tradução de Manuel de Seabra

Maiakóvski (1893/1930)
A FLAUTA-VÉRTEBRA
(Prólogo)

A todos vocês,
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem num banquete ergue a taça e celebra,
repleto de versos levanto meu crânio.

Penso, mais de uma vez:
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balaço.
Em todo caso
eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.

Memória!
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria,
esta noite ficará na História.
Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.


Maiakóvski em tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman

Arte Maia
CHAJANAJ CONTA COMO FOI A QUEDA DO CÉU
(FRAGMENTO)

Durante muitos anos ouvimos que os antigos diziam que o céu ia cair, e foi o que aconteceu.

Morreram todos os que se refugiaram sob a macieira branca, a macieira vermelha e as outras árvores. Todos foram derrubados pelo céu. Só as árvores ôtjayuc resistiram, salvando-se quem se abrigou sob elas. O homem que era dono dos dentes de Majoctsi foi quem salvou todo o seu clã. Há muito tempo ele guardava aqueles dentes. Cada vez que caçava um Majoctsi guardava seus dentes, porque costumava ouvir os antigos que diziam:

— Guardem bem os dentes de Majoctsi. Deixem-nos preparados para quando o vôôs cair.

Ao cortar o céu, de repente ele se transformou em fumaça e subiu. Porque, dizem, era muito denso quando caiu. Pessoas de todas as aldeias morreram. Só se salvaram os que estavam perto do homem que tinha os dentes de Majoctsi. Ele os guardava por todos esses anos. Aqueles foram os únicos que se salvaram.

Tempos depois que isso aconteceu, os homens foram ver as outras aldeias, o lugar onde estavam antes. Não encontraram nada. Nada sobrara das outras aldeias. Nem mesmo os ossos dos homens que morreram. Só muito pasto, cobrindo tudo.

Desde aquele dia, os homens guardam os dentes de Majoctsi e não deixam de tê-los sempre à mão. Mas desde então o céu não caiu mais.

Isso é tudo.



Relato cosmogônico da etnia nivacle, do Chaco paraguaio, traduzido por Josely Vianna Baptista,
autora dos Cadernos de Ameríndia.

Ezra Pound (1885/1972)
A literatura não existe num vácuo. Os escritores, como tais, têm uma função social definida, exatamente proporcional à sua competência como escritores. Essa é a sua principal utilidade. Todas as demais são relativas e temporárias e só podem ser avaliadas de acordo com o ponto de vista particular de cada um. (...) Os bons escritores são aqueles que mantêm a linguagem eficiente. Quer dizer, que mantêm a sua precisão, a sua clareza. (...) A linguagem é o principal meio de comunicação humana. Se o sistema nervoso de um animal não transmite sensações e estímulos, o animal se atrofia. Se a literatura de uma nação entra em declínio, a nação se atrofia e cai. (...) A Grécia e Roma civilizaram via linguagem. A linguagem de vocês está nas mãos de seus escritores. (...) Um povo que cresce habituado à má literatura é um povo que está em vias de perder o pulso de seu país e o de si próprio. (...) Uma nação que negligencia as percepções de seus artistas entra em declínio. Depois de um certo tempo ela cessa de agir e apenas sobrevive.


Ezra Pound

Josely Vianna Baptista
OS POROS FLÓRIDOS (FRAGMENTO)

Os poros flóridos,
gotas de sangue
em flores, espessura
do corpo que morre e
renasce em leito de
nevoeiros, em nuvem,
em sopro, em nébula
de flores, em divina neblina
de limbos e corolas,
no respirar de um deus,
no ar de uma palavra,
entre a palavra-alma,
entre a palma das mãos,
e em renovos velosos, no
veludo dos brotos,
no gozo de teu riso,
em corpo de linguagem.

Rito de esporos no ar vazio
violetas murchas recobrem os lábios,
os lábios abrem outras paisagens
(a morte agora metamorfose):
Vermelhos, tintos, lírios retintos.

(Lusco-fusco de flores, observo
o descenso da noite
iridescente: amores-perfeitos
para o pensamento
ou lírios bravos para o espírito,
e a paisagem escorrendo
pelas hastes de um
relógio de sol.)



Do livro Sol sobre nuvens, de Josely Vianna Baptista

Paul Kaffáva


Última foto do irlandês Paul Kaffáva. Esse tigre de dentes-de-sabre o devorou sem piedade. Havia neve nesse dia e a neve é fria.
Ver o tigre branco atrás do vidro
que tenta atacar uma criança

http://www.youtube.com/watch?v=87pDGsTYCqU&feature=related

Cena do filme "Absurda", do czar do bizarro David Lynch
Ver Absurda,
de David Lynch

http://br.youtube.com/watch?v=P9Q7ZKH7G4A&feature=related

Bruno Barbey


A tempestade lá fora aviva tudo o que se move: árvores vergadas ao chão. Schopenhauer ancora a barca Nautikon a um tronco de carvalho e retorna ao Hotel Sunset Boulevard, senta no parapeito do terraço que dá para o mar grosso e franze a testa. O médico lhe deu a notícia dolorosa: só dois dias de vida. Lythia, abalada com o câncer do marido, deita sob o guarda-sol para descansar. Ela, após alguns minutos, lembra a Schopenhauer que não somos nada, nunca fomos nada, e que, apesar disto, podemos guardar na memória todos os jarros de luz que o sol esqueceu à porta dos amantes.

Schopenhauer retorna à varanda deste hotel, à visão do mar. Esqueceu o costume de fazer discursos e, afastando com o gesto a mosca, volta a encarar sem esforço as ondas de salgada branca espuma, as ondas que se destroçam na pedra feito louças. Schopenhauer medita e decide: vai dar um passeio pelo bosque vazio nos arredores da Pacific Coast Highway e assassinar, com soco no ouvido, uma freira carmelita.

No meio do bosque vazio, nesta voltáica cidade de Los Angeles, Schopenhauer encontra a freira. Quando vai desferir o soco, ela reage:

– Agora não; você está muito cansado –, e crava um peixe nos ombros de Schopenhauer; um peixe que se debate de forma violenta.

– Você conhece este peixe? – pergunta a carmelita.

Schopenhauer responde que não. O arpão de um raio acerta a nuca de Schopenhauer, que não morre, antes mistura vocábulos próprios e alheios, paisagens de toda sorte, a e ele pergunta a si mesmo como é que um homem, que ia morrer dali a dois dias, podia tratar tão friamente uma freira carmelita, a ponto de querer assassiná-la com soco no ouvido?

Sim, Schopenhauer retorna ao Hotel Sunset Boulevard e encontra Lythia que, ainda sob o guarda-sol, folheia o Livro dos Mortos — o Bardo Todol — que diz que, alguns dias após a morte, tudo em nós vira vento e a primeira coisa que vemos é um cavalo, também de vento, e Lythia percebe que o Schopenhauer que se aproxima não conseguiu matar a freira carmelita e ainda trouxe um peixe cravado nos ombros, um peixe que não pára de se mexer.

Schopenhauer pergunta:

— Quanto tempo ficaste ao sol, Lythia?

Lythia responde, espreguiçando-se:

— Há milênios, milênios.

Uma sombra desce ao rosto de Schopenhauer sempre que recorda o prognóstico do médico que lhe disse:

— Só dois dias de vida, meu senhor, só dois dias.

Sem palavras


Haja saco!
7 estampas de Hokusai (1760/1849)