sexta-feira, 4 de abril de 2008

669 palavras e uma história de amor


Quando nasceu, recebeu da madrinha o carretel.
Enquanto tecia, sentia a lua e transitava distraída
subindo escadas, vestindo nuvens até que viu o sol.
Sol --- disse --- seu nome é palavra.
Palavra --- disse --- seu nome é amor.


I

Convidou-a para ir a um lugar onde se chega só.

Sua companhia, seu enigma. Fincou as botas na neve: --- Não. Tatuou algumas palavras nas costas dela e partiram. Não havia beijos, só as pontas geladas dos dedos e uma luz azulada. Sentiu seu hálito balbuciando: --- uma história de amor, uma história de amor... Seu hálito no pescoço dela e uma armadura de luz azulada refletindo beijos. Com a ponta dos dedos desenhou seus nomes na neve. O amor vive no país das palavras.


II

Desde menino, calava o que diziam o rio e suas pedras.
Do barranco, com as mãos fechadas em concha, arrancava a argila e a moldava

sobre a pedra de minério.
Explosões solares quebravam os vasos e libertavam as palavras que desciam o rio.
A mãe, o pai, todos daquele barro.


III

Madrepérola...
Na correnteza da minha artéria deslizam suas conchas.


IV

Sou filha da costela do barro, instrumento do sopro divino,

maçã escolhida pela serpente.

Sou a gênese do prazer, do pecado, de todas as coisas que você tentou dizer.

Sou a progenitora deste reino imperfeito: filho parido de uma ostra.

Minha luz, meu útero profundo, meu amor, minha maternidade:
tambor do fundo.

Ele trouxe uma orquídea para mim.


V

Lágrima e saliva:
o gosto da dor,
a dor do prazer.


VI

Naqueles dias caminhou até a pedra de minério.

Sentada junto ao barranco ela estava. Pensou:
--- Dá-me água pois tenho sede.
Tomou todas as palavras do cântaro e encharcou suas vestes.

Do colo dela, sonhou o rio.


VII

Era uma vez uma história de amor...

Linguagemévíiruslinguagemévíruslinguagemévírus

--- Enxergo tudo daqui.

--- Silêncio, falo do lugar da dor. Falo para você, signo do Eterno, por quem arrasto pesadas correntes e entôo este gemido.

Enfim, falo do uivolobosibilaserpente, falo de onde me chamam;
--- daqui do eterno,
Senhor de todos os sonhos, despertai-me!


VIII

Deste platô alço vôo e observo duas almas que caminham na neve.
Uma luz azulada e fria me comove.
Ela traz na mão um carretel e ele segura a ponta da linha.
Vigio seus passos e desvio pés de armadilhas.
Eles, lado a lado, atravessam o portal e buscam fogo no mundo dos espíritos.
Lá encontram e beijam o Minotauro.


IX

Asas de pássara, longas penas, corpo coberto de escamas, sou a ponte por onde atravessa a loucura.

Nos amamos, eu e a loucura.

Daqui deste platô, lado a lado, vigiamos aquele amor.
Ele anda pesado sobre a neve, o vento sopra no vaso e faz música

que visita a casa de dentro.
Acende a lâmpada: no escuro ninguém consegue enxergar.

--- Com qual instrumento? --- ele pensa.

--- Usaremos o carretel --- ela escolhe.

Os dois estão presos no espelho de gelo.


X

Tenho uma fada na ponta da língua que beija meus olhos e desperta outro sentido.

Vejo dois vultos que caminham e bebem neve.

Trazem barro nas mãos e palavras inscritas nas costas.

Vejo do lado de dentro do gelo.

Trago uma fada nos olhos que beija a língua da loucura.


XI

Pesadas correntes abrem sulcos na neve.
Das piscinas geladas pulam peixes para dentro do cântaro .
Lado a lado não têm fome e lêem o futuro nas íris dos peixes.

Tempo, invenção da linguagem.

Sim, são mortais.
Sinto tudo desta nuvem.

Tempo é vírus.


XII

Pobres crianças!

Quando as vejo assim, atravessando paredes, almas perdidas na imensidão do gelo

à procura do lugar onde se vai só, uma lágrima pesa entre minhas pálpebras.

A espada continua presa ao iceberg à espera da inocência,

única força capaz de libertá-la.

Pobres crianças que partiram encobertas pela luz azulada!

Do lugar das minhas retinas cansadas, as observo.


XIII

Tambor do fundo, acorde a voz ancestral!
Seu útero, minha orquídea.


IV

Duas crianças, mãozinhas em concha, catam floquinhos de neve à beira do abismo.

(Senhor, signo do Eterno, revele a elas o segredo do cântaro, a mágica da linha.)

Lado a lado não se vêem, caminham e chegam ao lugar de onde se parte só.



Um poema inédito de Adriana dos Anjos