quarta-feira, 18 de junho de 2008

Krishna


Molhada ainda de marinhos ventos, a Casa de Água guarda a respiração dessa mulher que anda, num estado de vidência órfica, da varanda ao quarto; do quarto à sala de música; e dali ao sono. Atrás dos muros de todas as casas de Villa da Concha há sempre uma roseira-branca que desfolha a chuva. Olor fino de chá. A essência de Krishna: Krim. Dentro do sono da mulher que respira inicia uma outra Casa de Água – a do sonho – que vence as chuvas contrárias e navega ao longo de uma restinga onde, naquela duna, escutamos um espírito que pronuncia: “Os hindus costumam dizer que existem árvores que podem ser chamadas de Kalpvrakshas – senta-se sob elas e tudo o que se deseja é satisfeito sem intervalo de tempo”. Inspirado pelo dito oriental, deito sob uma oliveira e peço ao meu coração que nade num trevo de quatro folhas.

Medusa


Pintura de Arnold Böcklin (1827 - 1901).
Um pequeno conto mitológico de K.: “O Cristalino, sob a forma de uma viração de ouro, penetrou surdamente no Castelo da Pureza e esparziu grânulos de miosótis no ventre da Bela da Noite, que concebeu a música. O Vazio encarregou a navalha de Perseoccam de árdua incumbência: trazer o crânio da Sicária, a única Górgona mortal. Antes de decepar o escamoso crânio tonto de serpentes da Sicária, Perseoccam teve que atar a imagem dela a uma superfície refletora constituída por película depositada sobre um vidro – espelho ou alma –, que precisa de silêncio e prece. Passou então a carregar o crânio – que empedrava quem o visse – como um despojo de inimigo vencido e, a entoar um mantra esponsalício, desencarcerou a Bela da Noite”.

Leviathan


No capítulo 7 do Horto de Leviathan, de autoria daquele mesmo anônimo da filosofia escolástica, uma nota aclara o único argumento convincente a favor da ressurreição do corpo. Eis a nota: “Quem construir uma pia baptismal no mantra, coloca plantas vivas na água, desprende-se da concretude e retorna ao princípio, ou àquilo ‘anterior ao princípio’, quando ‘antes que a primeira vela se acendesse, a vela já estava acesa’”. Cansada da fraqueza extrema, que sempre a enlanguesce nas primeiras horas da manhã, Lucana decide urinar no antifonário, após ter lido pela quinquagésima vez o insosso fólio do Glossarium latinatis. Que ela urine na própria saia de organza ou nas pedras do deserto, mas nunca no antifonário, porque nele está escrito, com letras de missal, que o cinismo é casca frágil e só nos salva da extinção a pureza das linhas de um Modigliani ou essas estruturas coruscantes de reflexões sardônicas. Lucana, no ensombrado quarto de dormir, ao cerrar os olhos profundos, observa miniaturas de afrescos gregos que parecem se guardar de um contágio indigno. Para não acordar Lucana, saio pisando musgo. Esqueci de regar as plantas no casarão. Antes de ir, ainda espio mais uma vez, à sombra do jarro de rosas, um breve orvalho na nudez daquela que dorme – de acordo com a descrição de Lezama Lima –, feito uma “pequena caixa de cristal, cheia de alfinetes e agulhas, e que, mesmo situada na última peça da casa, ainda sente quando o bonde passa”.

Caruso (1873-1921)


Ao amanhecer está Lucana adormecida na cama larga, entre copos de bebida emborcados, cesto de frutas --- kiwi, mamão --- e restos de sonhos, enquanto o Cristalino, frente à janela escancarada, fuma erva-cidreira e escuta no gramofone a voz de Caruso. A árvore fora de mim: é por ela que subo até às vidraças azuladas da Casa de Água, onde o vento acorda de cabeça para baixo: soprar o vento para as bananeiras e para as constelações. Aqui na varanda espio o Cristalino fumando e um fervor de agáricos nos troncos da amarga oliveira. Observo as finas cordas da chuva que serenam d’água os telhados de Villa da Concha. Calmo, podia inventar o paraíso, silêncio a silêncio, sombra por sombra. Seria um silêncio criador – fonte aberta ao acaso – busca incessante do gume ileso do vocábulo: silvo de fogo na geleira e nunca a lentidão líqüida de algas apodrecidas.

Erik Satie (1866-1925)


Para não morrer durante esse poço de marasmo que me acontece sempre que vou estender lençóis no varal, eu, K., desvendo o véu de Ísis e, por trás do véu, o que vislumbro são umas letras – racimos de pérola – que devem ser ouvidas como palavras que sabem o que fazem. Fizeram concha, ar, Órion?. Ou foi o Cristalino quem as ventilou? Shakespeare: “Se a palavra é sopro e sopro é vida”. Quando querem, as palavras deixam-se aprisionar pelo sopro e fingem que são concha, ar, Órion. As palavras: sombras que nada conhecem, a não ser que indiquemos – a elas – a fenda no beco por onde espiam que – sendo palavras – são sereias visíveis. Para não morrer, escuto Erik Satie: Trois gymnopédies. Para não sucumbir aos acontecimentos ínfimos e às felicidades cáusticas, eu preciso entoar mantras, vocábulos, e mergulhar na piscina, na arbor vitae, na consolação da noite.

Chaplin


É um Chaplin ou um quartzo ou um laranjal quem vai iniciar esse capítulo? Fomos dilacerados desde o nascimento. Origo et fons. Somos apenas sopros no curtume a descansar à sombra do vendaval. Tal o Vishnu enverdecido, a epifania de plânctons revivesce dourada na nudez do pensamento, que não se turva nem com a aparição de pequenos cavalos-marinhos agrestes que vivem em suspensão nas águas salobras e que, também, são conhecidos como haloplânctons. A estrela da manhã foge do liso céu e se equilibra no cílio de Lucana. Um esgarçar de ribombo recende grosso do entrechoque de barcaças. Se os esgarços de ribombo fossem vozes, que recenderiam ou revelariam? Rinocerontes-do-mar ou o alabastrino óleo de Caab? O sono esquece na varanda da Casa de Água um espelho: astúcia da vigília, para que o invisível, afastado de ossos, nuvem, nervos, ilusão, pizicato, tractatus – fisgue-se a si mesmo no Vazio; capture, no espelho, a sensível fonte. Neste refletir, o invisível, por sua vez, transmuta-se em sopro de viração – potencia oscura –, sumindo-se num oboé e, na neblina da madrugada, é apenas neblina, nada mais.


Busto do imperador Caracalla.
Sonhei tanto, sonhei tanto, que não sou mais daqui. Escuto, no sonho, e todo sonho é uma astúcia da vigília, escuto algo pronunciar que eu devo ir às linhas de um poema intitulado Le bains de Caracalla.

Imre Kertesz


Imre Kertész: “Em meio ao grande ruído que nos rodeia, é fundamental criar um pequeno silêncio dentro de si para poder começar a pensar com serenidade, já que tudo começa no pensamento”.

Foucault (1926-1984)


Foucault pronuncia a frase: “A marca do escritor não é mais que a singularidade de sua ausência”. O vazio da escuta – akuón – algo dispara a flecha, algo acerta o alvo. O cérebro não sabe a diferença entre o que está acontecendo lá fora e o que está acontecendo aqui dentro. Sabe-se que a máscara do espelho de ouro (ou o inconsciente ou Deus) não é rígida, mas reflete o rosto que voltamos para ele. A hostilidade confere-lhe um aspecto ameaçador, a benevolência suaviza seus traços.
7 mitos de Claudia Kunin







James Bashford, 1940


O amor sempre dá um jeito.
Escutar "Amor",
de Carlos Drummond de Andrade

http://www.youtube.com/watch?v=Lf572gA1xFU&feature=related

Greta Garbo




A vida é um sopro: o túmulo de Greta Garbo (1905-1990), na cidade de Estocolmo/Suécia.