quarta-feira, 27 de agosto de 2008

ABRI-VOS, PORTAS DE OURO, ANTE MEUS AIS!


O que adorei até o osso, onde respira? Ido, dissoluto, se estende ar suave acima dos telhados da Casa de Água. No Oldsmobile verde-claro da ilusão passa Georgia O’Keeffe mariscando portas d’ouro entre duas ondas do mar. A çankha hindu afugenta demônios, excita os deuses benévolos. Toda devastação traz o germe de seu idílio. O coroado nó de fogo e o jasmim urdem o córrego nupcial. Quassar a raiz das cactáceas no areento. Na Casa de Água, à sombra de figueiras-bravas, a barca de Bach nascente.

Kami: vento, em japonês.
A DEUSA SAHO

Nem mesmo seu nome é conhecido:
flores de capim à beira de um riacho.

Chiun


A deusa Saho sonha com Sôgi. Sôgi sonha com a deusa Sahô. Água os desnuda: a salgada branca espuma, nudez vai e volta.

Anon, 1900


MEMÓRIA DO AGUAÇAL

Dedico à Paula Mota


Oculto na ramagem do que rascunho, respiro metade xamã, metade pesadelo. Rascunho quintal para garças e mar, enquanto o reino nublado, na vigília, se desfolha. O Buddha que não existe, quando escuta o aguaçal, recebe o pensamento do aguaçal. Depois vai arrancando de muros rentes ao palácio mil sóis ali avoantes. O que eu sei dos manuscritos do tímpano é que a matéria imaterial faz refém a matéria. No papiro de Stephanos – hermetista do século 7 – a palavra é uma lasca da voz do Buddha que não existe, inscrita em aguaçal que fia e tece: a fala é então sua luz e singra, íntima do vazio, à bordo da barca Nautikon.

A casa de Alfred Hitchcock



Ver Jacques Tati

http://www.youtube.com/watch?v=_eTwSnjUZ5c&feature=related

Cartier Bresson (1908-2004)


A praia dos Insulados


No extremo sul da praia que apelidamos de a praia dos Insulados, imponente, ele, o leão de vento acorda e vem com a rapidez do raio até onde estou. Corro desesperado até à árvore mais próxima.

Subo na carnaúba, o leão de vento finca as garras de vento no tronco da árvore e, quando vai me destroçar com os dentes de vento afiados, eu acordo com o despertador marcando 7 horas em ponto.

Levanto, mergulho sob as águas do chuveiro, contemplo a íbis nevando no outro mundo enquanto faço a barba com Gillette G2; essas águas do chuveiro são contínuos choros dolorosos de uma deusa que teve o pescoço decepado.

Kountouris


Shiki (1867-1902)



Ana Castro de Jesus Leão Beeck:
minha vó, meu amor.
A RESPIRAÇÃO DOS VELHOS

Esse poema foi escrito em reverência à vó Ana, 97 anos.


Cobrir-se com o plânctum da alegria, antes que o langor da preguiça nos olvide entre ceras. O nada da brisa, a perfeição da leveza nesse terreno coberto de bambus. Quantas noites mansas escuto grafadas em tábuas de caligrafia chinesa? Construídas com ossadas de velhos sábios, as tábuas guardam a respiração deles. A caligrafia salva do esquecimento: soluços, amor, relva, idioma de velhos sábios que reverenciam o silêncio nesse terreno coberto de bambus.


Ver o blog de Paula Mota,
direto de Açores/Portugal.

http://adorocolar.blogspot.com/

Klein

JARDIM SECRETO


Nesse deserto, o que é da turmalina
é da turmalina, sim, como pevides claras
circundadas de dureza natural,
a da pedra que é, turmalina que respira.
A turmalina – silicato complexo – mineral
exposto a crivos pluviais,
e a tantos outros crivos,
também de sombra e areia, de cascos
de camelos e sol alto, sol: concha ardente
que incide no tímpano da turmalina,
tímpano acordado nas dunas desse deserto,
escutando o quê? Talvez o jardim
que se abre sob o areal de Sahel,
e é jardim que não se vê com olhos,
nem com a imaginação,
se adivinha com palavras.