segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Eri Skyrgianni, sem data


Isto não é maconha, mas você pode fumar.

Ochakovsky Yuri

Lothar Osterbrug, 1936


Zeppelin sobre Timbuktu numa certa manhã de névoa.
Rente ao mar grosso de sal e azul e às anêmonas molhadas; debaixo de árvores altíssimas — paineiras, baobás –, Eu, S. — o peixe-espinho — com a boca seca, os olhos turvos, também aguardo Godot e Francisca B. nesse terraço do Hotel Sunset Boulevard – à beira da Tabacaria do Esteves. Sempre que chego aqui, parece que um nevoeiro me envolve e o Esteves me sorri. Desejo confessar algo: diante da beatitude, tem vezes, emboto a ponta da sagacidade e, sob nuvens velozes, sorvo da xícara de linhagem um chá verde e aproveito para descansar à sombra de um guarda-sol branco. Aqui no terraço, enquanto espero meu dry Martini, penso seriamente em desistir da cruenta e inútil pesquisa do Vazio Humano... Eu, Schopenhauer, de vez em quando, segundo os dementes e caluniadores, sou o desenrolador de livros da biblioteca de Alexandria e, à bordo de uma certa barca Nautikon, singro acima das torres circundadas de neve, de ciprestes e de corvos cruentos. Ao longe, na colina também nevada, arcanjos esvoaçam, pousam nos telhados românticos de ardósia onde a chuva se deixa cair, vazando água sobre água, chuva sobre o cair da chuva. Noturno, o rio flui de seu manancial, que é o amanhã eterno. Aqui, nessa região gelada, pode-se ver claramente, ergue-se a Torre abandonada e, nela, Hölderlin ainda respira incólume; das fendas da Torre foge toda música e todo corvo e deságua a fuga e a chuva e o pêssego e o mineral e a luz do candeeiro em fuga e a sombra molha a pele de papel-de-arroz da gueixa Yuki. Lá o vazio — o vazio do céu que molha as roupas estendidas no varal. O vazio, que nunca feriu a copa das árvores nem feriu o morto estirado na relva, antes o ressuscita e lava seu crânio com sete óleos, sete ervas; o morto que, ressuscitado, cai num carrascal sem rosas e, durante a vertiginosa queda, é capturado pela horda de pégasos que migram para a ilha de Lídia. Em Lídia esvoaçam uns cavalos brancos com cristais pelas crinas e estes cavalos brancos exercem a pureza com ferocidade e não, como disse Calígula, a ferocidade com pureza. Sobriamente Eu desfio um rosário de estrelas para Oxum, belo e aquático Oxum, dentro de Oxum não há nada, apenas existe, em Oxum, uma certa música que torna serena a turba rumorosa e singra às constelações da sibila Lythia e, diante dela, saibamos escutar — não os doutores do Grão-Veículo que insistem, em seus ensinamentos, que o essencial do universo é o vazio — mas, diante de Lythia, saibamos escutá-la, reverentes, dois minutos antes da chuva.

Anônimo
Após a morte, a consciência, não tendo nenhum objeto sobre o qual repousar, será levada pelo vento, procurando o cavalo do sopro.

Bardo Todol

Claudius Ceccon

Sem palavras

Estive longe uns dias, mas retornei com algumas reflexões filosóficas de Espinosa:

1. A alma humana não conhece o próprio corpo humano nem sabe que ele existe.
2. A alma humana é a própria idéia.
3. A essência das coisas produzidas por Deus não envolve a existência.

Larry Wiese, 2003

A BARCA DOS LOUCOS

Os vocábulos são características das coisas.

Cícero


Nunca respiram nesse poema,
aqui alinhavado na página fria,
os vocábulos "a", "barca", "dos", "loucos".
Inexistem, somem depois de pronuncidos.

Contudo, sem os vocábulos
"a", "barca", "dos", "loucos",
de que modo vislumbrar
a
barca
dos
loucos?

Em nenhuma circunstância
esqueças o célebre dictum:
em literatura não há nada escrito.

Amateur Iyonnais, 1914



Antígona
ANTÍGONA

Caída no azulejo do banheiro,
a flauta de Antígona, a louca.
De madrugada, Antígona vai ao sotão,
acrescenta um cecedilha

na palavra louca.
No café da manhã, os acordados
observam na pia certo objeto
de matiz esbranquiçado:

é a louca da Antígona,
agora transmutada em louça,
que ela mesma lava.

Depois enxuga as mãos no vento,
prepara fumo no cachimbo,
esquece lábios molhados na flauta vazia.

Melander, 1875

Cura-me de formas turvas, primavera selvagem. Cura-me da miséria tumular. Cura-me do ríctus da amargura. Cura-me do conturbado vendaval de Carrascozza. Cura-me de não fazer ablução com água de estrela. Cura-me de crótalos marinhos envenenados. Cura-me de cadáveres dragados nos pauis. Cura-me com os Santos Óleos e o azeite dos doentes. Cura-me de fétidas palavras. Cura-me com a força da doçura. Cura-me com a força da poesia. Cura-me com a força da música. Cura-me com a força das mulheres e das crianças. Que língua, ossos e olhos sejam para sempre. A constelação dentro de ti: água imersa em água. Buddah é o que acontece na pureza. Daqui há bilhões de anos, tua respiração um Buddah: será hoje! Buddah é o ar: não é um, nem um não. Mistura de ambos. Não é um: é concha, Órion, vento. Nem um não: Buddah é sim. Mistura de ambos: Buddah é, sim, concha, Órion, vento. Quanto mais próxima a língua da origem da chuva, menos fel e gramática. O acaso espreita da folha em branco. Toda sede do céu é de abismo e vivace sorvo, touro de mar caço à unha: oro a Orum, peço que a neve nô caia nas árvores vergadas pela névoa. O pensamento quer matar a sede na chuva. Quanto mais perto da música de câmara, mais a língua venta um acorde que amanhece esse virgem verso, esse rosário de buirás, esse kami na imensa altura do vento. Sonhar paraíso que enxágua retinas em moinhos-de-vento. No paraíso, esquecidos de tudo, jogamos búzios, modelamos o barro, adormecidos em camas de ilusão, acordados pelo assovio de um círculo branco. No paraíso, um dia, palavras de Shiva Nataraj, outro subimos a encosta pedrenta, saltamos da beira do abismo à solitude do jarro. Ontem somos mulheres, fritamos peixe, ou amanhã, homens, varremos a casa. Sábado, porque só há sábado no paraíso, crianças sopram o sol e o perfume do sol nos impregna com duas eternidades. Quando morremos, sim, porque há morte no paraíso, em cemitérios não nos acostumamos, fugimos pelas crinas de garças,escutando na barca Nautikon a respiração de Buddah, a çankha de Buddah. Sob o linho castiço da chuva, a treva horrível de nosso espírito vocifera claros nomes serenos. Atravesso o deserto com uma pedra no fundo do poço. Tanto azul de águas, mas a pedra, taciturna monja sem sol, nada espera, é só uma pedra envolta em antigo silêncio. Bem no fundo do mar de Abrolhos, esta pedra, seca por dentro. Tudo se pode falar: a transparência contínua, a praia com bicicletas. Eu rezarei a noa de um colar sem sombras, que te guardará da ilusão enorme. As relíquias de um domingo de ramos no copo d’água e nunca mais te verei embaixo da figueira. À sombra adriática do desejo eu busco – o vento que ergueu tua saia – a saia com que baixaste ao túmulo. A última flor do Lácio afina a língua no elixir primitivo que enovela a pedra sânscrita, pedra que os construtores desprezaram. Com ela posso segredar sargaço, grafismo, água à língua. Amigos, inimigos, não acordem as banhistas nuas na piscina. Elas nem sabem que o Arcanjo podia vir acordá-las com pizicatos de violoncelo. Tomara que nunca venha. Só assim as adormecidas continuam nuas. Avança um acorde de piano no esquecimento como dardo de luz brincando. Eu tenho motivos de sobra para ficar entre águas e conchas. Eu quero mar, ritmo, gôndola. Eu quero ar, clarabóia, agave. Tenho motivos que a luz desconhece. Só o silêncio perfumado sabe a imensidão de nossa primavera invencível.