segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Roger Camp. 1993


O acaso é o grande mestre de todas as coisas. A necessidade só vem depois, não tem a mesma pureza.


Luis Buñuel

Quanto maior é a sede, maior é o prazer em satisfazê-la.


Dante Alighieri

Tazio Secchiaroli, 1963


Fellini (1920-1993)
De homem a homem verdadeiro, o caminho passa pelo homem louco.


Michel Foucault

Dominique Bollinger, 1996


Na verdade, a filosofia é nostalgia, o desejo de se sentir em casa em qualquer lugar.


Novalis

Uma vez que estes mistérios nos ultrapassam, finjamos ser os seus organizadores.


Jean Cocteau

Tom Chambers, 1997


Uma lamparina de azeite nunca se apaga. É uma luz que realiza sempre a função da luz – extrair objectos iluminados dos objectos apagados.


Maria Gabriela Llansol

Às vezes parava o tempo
Como um levita esquecido
Na comunhão.
Parava-o, e ficava atento,
A ver a cor do milagre
A desmaiar-lhe na mão.


Miguel Torga
Ver 7 artistas plásticos
da Galeria Saatchi

Kiran Chugani


Vincent Huang


Diane Galbaud


Michael Davis


Oliver Smith


Carol Bruton


Charmain Fitzgerald


Fortuna


Laszlo Layton, sem data


Chego ao casarão e uma chuva noturna, com a lira destemperada, lava tudo, desde a carniça do sovaco da cárie que trago na alma até às plantas ressequidas a chuva repentina lava. Ia entrar, mas prefiro fechar os olhos e relembrar aquela história que me contou um velho marujo no bar Gallo del Viento. Dizia-me ele que, em sua casa à beira do ancoradouro, havia uma ave-do-paraíso morta em cima da geladeira Cônsul. Ave-do-paraíso que morreu, depois que provou carne de cavalo estragada. Cavalo que morreu de tanto carregar baldes de água para apagar o fogo que se alastrava pela casa. Fogo causado pela queda dos longos círios nas cortinas de linho branco. Círios postados ali para o velório, enquanto as labaredas iam e vinham lambendo os móveis, os tapetes. Velório? É, velório de sua mulher, que estava na sala de jantar, quando ele entrou desesperado em casa e a matou, pensando que ela fosse um gatuno, com certeiro pontaço de faca na altura do coração. Claro que não ri da história do marujo. Me benzi com peixe e talos de arruda, parti águas de oceano para deslocar abismos, caí em cisternas e escutei Rimski-Korsakoff num disco de vinil usado e se eu cerrasse os olhos agora e escutasse com atenção o séptuor que a senhora do gelo desfia na varanda? O séptuor que diz assim:

HOSOMI

Piscar do espírito:
o paraísono sonho
te esquece entre águas e conchas
e, súdito,
ao acordar
te respira

Sem palavras


Clare Strand, sem data


EM CASA DA FRANCISCA

Na solidão seca, sob o efeito do sereníssimo vinho do Porto e coberto com o silêncio aquoso da noite azeviche, o insano S., em êxtase, vocifera seu claro idioma de linho contra tudo o que seja fel e lepra.

S. que, na limpa e sempre enevoada vila de Torre Escura, e no velho sanatório de Santa Chuva, também é conhecido como Schopenhauer. Dizem os místicos que ele foi, em reencarnação passada, na biblioteca de Alexandria, o copista das obras raras do grego Kalicanthus. Considera-se que essa biblioteca tenha sido fundada no início do século 3 a.C.

Na vila de Torre Escura, destinada a ser o menor lugar do mundo, S. também escreveu um ensaio intitulado Hidráulica. Outro dia a barca de Schopenhauer ancorou, com os velames mais rasgados do que nunca, no cais de pedra. A alma do velho filósofo estava frescamente perfumada pela verbena. Ao redor dele, gatos. Mexessem a cabeça os gatos e as árvores floresceriam todas ao mesmo tempo.

Os mantras que, às vezes, S. pronuncia, colam-se à parede branca e ficam ali, manchas nupciais de música. Diante desse muro branco escalavrado, à sombra dele, Schopenhauer adormece e sonha que está acordado no colo da Sibila – sonha que chove lá fora uma espécie de oiro velho – enquanto ela o acaricia com o ramo do mistério. E que mistério seria? Em casa da Francisca, onde S. vai aos domingos, a biblioteca é escura e estreita, com gaiolas de canários e vasos de plantas; algumas estantes de pau preto acondicionam grossos fólios de convento e de foro, e até um anjo pode ser visto que observa, pela janela escancarada, o laranjal.

Sob a imensa curva deste céu, nesse primeiro dia do mundo – origo et fons – eu, Schopenhauer – passo os dedos pelos volumes da História genealógica, mas me detenho horas no "Vocabulário", do muezim turco Sitar al-Camaã, depois rabisco numa das páginas desse livro o copo cheio de gérberas negras. Aí, quando acordei, flagrei que os olhos límpidos e marinhos da sibila Lythia pulavam o muro.

Por vezes, o óbvio está errado e o insólito é verdadeiro.
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do mundo árabe,
por Samer Mohdad







Ellen Carey, 2007


O SILÊNCIO DAS TIGELAS DE ARROZ

Em lugar de olhos, dois nuncas. A noite é palavra unida à noite essencial. Um diamante iça, em lugar da morte, e da cisterna sombria acordo alado: sem amada, capinzal, mãe, pedra ou labirinto. Em lugar de respirar, a música me vela. A eternidade é o silêncio das tigelas de arroz. Em lugar de estar vivo eu sou um canto, enlouquecido por discordar do roteiro. É desconcertante morrer sem acariciar o pomo dourado da própria voz, e a lenda da pele, que acende com o toque dos dedos. É sempre absurdo não ter direito a um nome, a um quintal com pequenos pássaros intensos. Os erros são todos meus. A luz é toda tua. Quando eu não existir mais, eu também virei recolher os domingos que não passei à beira-mar.