quinta-feira, 11 de dezembro de 2008


Um desenho de Fernando José Karl para a capa de seu novo livro: Casa de água.


Um grafismo
de Fernando José Karl.

Dae-Woong Nam, sem data


CASA DA AGOA DO CHAFARIZ

Caída no lajedo da Casa da Agoa do Chafariz, a velha pronuncia a palavra: Qadós. Um aguar de onda marinha umedece o rosto de Hilda Hilst em decúbito dorsal rente à árvore. Envolta em eflúvios de água de colônia, ela agoniza e não há cítara nem pedra que a ressuscite. Com arraia tatuada em suas costas, com um olho tatuado acima de seu púbis, Hilda espanca com chapéu de chuva uma das janelas da Casa da Agoa do chafariz. Hilda Hilst traz hua cabeleira de limos, chêa de caracois, de michilhoens, ou caramujos e, ao peito, a música e um talim de pelles de enguias. Ainda é tão cedo que Hilda Hilst descerra a cortina de cristal e contempla o vento nas ramas. No altar, as lágrimas da deusa Orín são abandonos da chuva num dos degraus de mármore. Ou a deusa borda lágrimas na tempestade porque não voltarás? O marasmo dessa noite, através das cortinas de contas de cristal, olha para a ode que grafito sobre o dorso do peixe persa.

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Hilda Hilst na Casa do Sol, em 1967
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de Hilda Hilst
Hilda Hilst (1930/2004): o último sopro

Entrevista a Fernando José Karl


Hilda Hilst sempre encarnou, em sua escritura, a santa, a prostituta, o corifeu. Com mais de 40 títulos publicados e uma coleção de pelo menos oito dos mais importantes prêmios literários do país, HH só não se conformava com uma coisa: a falta de leitores para seus livros. Apelidada de “esfinge da literatura brasileira”, Hilda criou uma outra língua portuguesa, mais densa e metafísica que a praticada cotidianamente. Ao fácil prazer do texto sempre preferiu a assepsia, os desafios, os contrastes entre a miséria humana e o não-dito. Poucos críticos se extasiaram com os segredos da palavra de HH, dos quais se destacam Leo Gilson Ribeiro e Anatol Rosenfeld, que a colocaram ao lado de místicos – como San Juan de la Cruz – e de experimentalistas – como Guimarães Rosa (de quem era íntima amiga). Segundo, ainda, o crítico Leo Gilson Ribeiro, Hilda Hilst “submerge o leitor num mundo intrépido de terror e tremor, de beleza indescritível e de uma fascinante prospecção filosófica sobre o Tempo, a Morte, o Amor, o Horror, a Busca”. Na juventude, HH era mais festejada por sua beleza física do que pela profundidade quase insuportável de seus versos. Até o Carlos Drummond de Andrade chegou a arrastar mais de uma asa por ela. HH sempre detestou “panelinhas” e ignorava o poder dos lobbies literários. “Não quero ser um espetáculo. Quero que me leiam”, costumava dizer. Sem filhos, morando em meio a esculturas talhadas em madeira, livros e muitos cães, a escritora continuava vazando diariamente a vida na literatura. Entre seus livros destacam-se “Qadós” (o livro que mais apreciava), “Com os Meus Olhos de Cão”, “A Obscena Senhora D” e “Rútilo Nada”. Para HH, coisa punhal era mais palavra. Pensava tato e vinha negro. Água-viva-luz. Máscara de nojo, cão de pedra, era assim HH, que olhava muito para os pés. Nela um muito de todos: pompas, fachadas, mas lá no invisível se sabendo tigre. Pensares de dentro, mas nela a pequena pétala de carne. Sua vida: pergunta e palavra – o som sempre rugido vindo da garganta abissal. A seguir, algumas das perguntas que fiz à Hilda Hilst, em 1994, numa manhã ensolarada de novembro, quando de minha estada na Casa do Sol, nos arredores de Campinas/SP.



Fernando José KarlHilda Hilst por Hilda Hilst, quem é?
Hilda HilstSou um pequeno vitral malva e anis decompondo-se sobre a mesa onde a música fez cocô. Meu ovo cabe na galinha. Meus pés tortos cabem no céu. Bule de prata. Bata branca. Sou um corpo rajado, um sopro do alto, que é brisa, e entorto a língua, a linguagem, disseco tripas, galopo meu quarto de um canto a outro e misturo histórias que contei antigamente. Sou Grande Caracol Baboso, lábio frouxo encantado. Já perdi dez milhões de sedas e estou aqui sovada, ampliada para a morte, coração minúsculo. Costumo, de madrugada, mas não conte a ninguém, dar lambidonas num corpo de Anjo que vermes descarnam. Acho esquisito chamar-me Hilda Hilst.


Fernando José KarlEm 1957, por ocasião de sua primeira visita a Paris, você procurou Marlon Brando, que estava lá filmando junto com o Dean Martin. Como foi esse encontro?
Hilda HilstEu queria muito conhecer o Marlon Brando, achava-o lindo, e então me tornei namoradinha do Dean Martin só pra ficar perto do Marlon. Mas eu não conseguia essa aproximação de jeito nenhum. Me vi obrigada a agüentar o Dean bêbado vários dias e, como ele não me apresentava o Marlon, resolvi ir ao hotel onde ele estava, dei uma linda gorjeta ao porteiro e perguntei o número do quarto dele. Cheguei lá, bati na porta, esperei uns dez minutos. Marlon Brando apareceu com um extraordinário robe de seda, acompanhado do ator francês Christian Marquand, que, anos depois, revelou ser seu amante. Eu estava acompanhada de uma amiga, a Marina de Vincenzi, e meio de pileque. Disse-lhe que queria fazer uma entrevista. Mas eu só olhava para os pés dele e não sabia o que dizer. Aí ele falou: “Só porque você é bonita acha que pode acordar um homem a essa hora da noite?” Ele achou graça, foi educadíssimo, mas eu não consegui entrar no quarto e dormir com ele. Fiquei decepcionadíssima. Naquela noite, novamente, ele tinha escolhido o Marquand...


Fernando José KarlO estilo confessional é um dado muito presente em sua obra. A que você atribui esse estilo?
Hilda Hilst – Eu acho que o escritor quase sempre está inteiro naquilo que escreve. Existem, claro, momentos que não fazem parte de sua vida, mas acredito que o escritor está totalizado naquilo que escreve e, penso, isso não é só coisa minha. Você vai desdobrando possíveis personalidades suas, as personagens têm tudo a ver com uma parte do escritor que foi levada a um extremo de maldade, ou de beleza, ou de perfeição.

Fernando José KarlO que você escreve poderia ser traduzido assim: uma tentativa de tornar intensamente visíveis as coisas que você ama?
Hilda Hilst – Mais que isso: definitivas, eternas. Pode ser que um dia, na hora de minha morte, eu me lembre dessa luz incindindo nesse cinzeiro. São os caminhos da luz, talvez, que você tem que percorrer dentro ou fora de si mesmo.Há momentos em que você viveu a perfeição, a beleza, e existe uma nostalgia da beleza dentro de cada um de nós, que seria Deus, o inominado. Penso que o homem tem a nostalgia da santidade, da perfeição, da luz.


Fernando José KarlPara terminar, rápido e rasteiro – qual o mistério dos mistérios para você?
Hilda Hilst – Eu penso que seja a paixão, a nostalgia da paixão, que é terrível, mas que, por outro lado, faz você revivescer. Para mim, me apaixonar com pudor era uma coisa maravilhosa. Mas, até mesmo nas minhas fantasias eróticas – e eu estava sempre só quando as tinha – eu ansiava por uma imagem e, vocês sabem, ansiar imagens é infernal. Você não sabe qual imagem vai olhar sua decomposição na velhice. Eu desejo que quem me olhe seja meu cúmplice, cúmplice de minha sina.



Pequena biografia

Hilda Hilst nasceu no dia 21 de maio de1930, em Jaú/SP. Filiação: Apolônio de Almeida Prado Hilst e Bedecilda Vaz Cardoso. Faleceu a 04 de fevereiro de 2004, no Hospital das Clínicas da UNICAMP, (onde estava internada desde 1 de janeiro), em Campinas/SP. Causa: Deficiência cardíaco e pulmonar. O primeiro livro de HH foi "Presságio", 1950.

Hugh Shurley, 1988


O vendaval fustiga as árvores que batem nas vidraças do jardim de inverno do senhor Caligari. Ele fuma erva, sorve líqüido. Uma deusa aquática, que ali está junto ao abajur, dirige-lhe a voz, de modo familiar, para lhe perguntar alguma coisa, algo banal que seja, mas, em verdade, para retê-lo consigo, e sentir a língua escamosa dele na sua pele branca.Com os dedos hábeis e chuvosos o senhor Caligari ergue a saia da deusa e a violenta ali mesmo entre as plantas do jardim de inverno. Que amor mais escuro, choram árvores da noite – galhos contra muros – árvores que batem cada vez mais fortes na ampla janela envidraçada.Antes de dobrar a esquina, ela voltou a cabeça, e, na forma do costume, disseram adeus com a mão.

Martin Schoeler, 2006


Moro longe de Kafka e da barata, no Graben, perto do Café Continental, enterrado vivo num cubículo de cimento, que não permite que eu dance sob a tempestade, que eu corra pelas ravinas, que não autoriza que eu dê mais que um passo para cada lado. A claridade que vem da geladeira finca sua luz fria na minha retina e, para que essa luz penetre meus tímpanos, inclino a cabeça até o ladrilho, ali me abandono, encolhido, e quase penso que escuto a chuva no jardim de inverno.Finjo tão completamente que sou a chuva no jardim de inverno, e aproveito para encharcar aquela que sai às pressas do Café Continental. Ela chega em casa aturdida e a primeira coisa que faz é buscar uma toalha no banheiro. Tenta se enxugar, não consegue, porque está molhada com a chuva fingida que sou, chuva que escuto no jardim de inverno.

Les Krims, 1968


Esculpido na água viva da constelação --- durante o século I dos linces --- eu, Juliá, moro teu azul de oásis, oásis com cadáveres obcecantes. Moro teu azul de oásis --- dolorido, com esperas soçobradas --- um corpo, um ancoradouro de aparições que são ventanias, depois trevas, porque foi sempre assim a loucura: estarmos aqui de improviso, as frontes apenas aparentes, lágrimas acendidas sob a máscara, nossa febre suave e uma palmeira --- alta como a ressurreição --- inclinada simples e musical na noite clara.

Adelaide Hanscom Leeson, 1920


Na solidão seca, sob o efeito do sereníssimo vinho do Porto e coberto com o silêncio aquoso da noite azeviche, o insano S., em êxtase, vocifera seu claro idioma de linho contra tudo o que seja fel e lepra. S. que, na limpa e sempre enevoada vila de Torre Escura, e no velho sanatório de Santa Chuva, também é conhecido como Schopenhauer. Dizem os místicos que ele foi, em reencarnação passada, na biblioteca de Alexandria, o copista das obras raras do grego Kalicanthus. Considera-se que essa biblioteca tenha sido fundada no início do século 3 a.C. Na vila de Torre Escura, destinada a ser o menor lugar do mundo, S. também escreveu um ensaio intitulado Hidráulica.Outro dia a barca de Schopenhauer ancorou, com os velames mais rasgados do que nunca, no cais de pedra. A alma do velho filósofo estava frescamente perfumada pela verbena. Ao redor dele, gatos. Mexessem a cabeça os gatos e as árvores floresceriam todas ao mesmo tempo. Os mantras que, às vezes, S. pronuncia, colam-se à parede branca e ficam ali, manchas nupciais de música. Diante desse muro branco escalavrado, à sombra dele, Schopenhauer adormece e sonha que está acordado no colo da Sibila – sonha que chove lá fora uma espécie de oiro velho – enquanto ela o acaricia com o ramo do mistério. E que mistério seria? Em casa da Francisca, onde S. vai aos domingos, a biblioteca é escura e estreita, com gaiolas de canários e vasos de plantas; algumas estantes de pau preto acondicionam grossos fólios de convento e de foro, e até um anjo pode ser visto que observa, pela janela escancarada, o laranjal.Sob a imensa curva do céu, nesse primeiro dia do mundo – origo et fons – eu, Schopenhauer – passo os dedos pelos volumes da História genealógica, mas me detenho horas no Vocabulário, do muezim turco Sitar al-Camaã, depois rabisco numa das páginas desse livro o copo cheio de gérberas negras.Aí, quando acordei, flagrei que os olhos límpidos e marinhos da sibila Lythia pulavam o muro.Por vezes, o óbvio está errado e o insólito é verdadeiro.

Peter Liepke, 2003


Um pedaço azul de sabonete caído no ladrilho. O clarão súbito e breve de um relâmpago de Heráclito conduz as coisas todas ao fluxus. Eu traio Lucana com essa morena que encontrei na rua das Larissas Descalças. Estamos no Motel Agreste. Daqui posso ver a Casa de Água pela janela que, parcialmente fechada, deixa penetrar o ar, mas torna sombrio o ambiente. Se Lucana me telefonasse, eu lhe diria que mergulhava no mar, quando, na verdade, o que eu mergulhava eram os dedos entre as coxas dessa morena de olhos azuis, cabelos pretos. Os ramos afundados ungidos de Vazio, para não esfolar a pele quando o andamento de águas um contra o outro esfregamos. Daí é o instante em que as águas virgens jazem ao lado da friez de corais ouro-alaranjados, águas virgens estiradas no silêncio. Claro que Lucana nem desconfia que estou aqui nesse motel e acariciando esse paraíso de olhos azuis, cabelos pretos. A morena é uma dessas colhedeiras de mariscos e sopra de minha alma a ferrugem e o remorso. Sobranceira, ela rapta-me da ante-sala da loucura, e é por isso que, com haste de bambu, tatuo na minha pele a silhueta que é divina da colhedeira de mariscos. Ela esquece ervas-de-cheiro entre meus pés, nas cortinas e nos lençóis onde trançamos leves desesperos. Coroada quer coroar o que no silêncio é gramática da fonte. A de olhos azuis, cabelos pretos, é um lagar onde não há uvas cáusticas. O que eu sei, dela, é a jângal, e aqueles olhos, com sede, como se vindos de um céu de safira oriental. Dançamos, num andamento vivo, a sardana com o tamboril e a flauta e, à sombra de grandes barcas, com os corpos nus passamos por sobre as algas, os náufragos, as florestas submarinas, os hortos subaquáticos, os bosques molhados. Fora do Motel Agreste, o mar adora o abandono de toalhas molhadas que jogamos no piso eu e a morena – duas águas que se encontram na madrugada: mesma estrela na proa e uns poucos cabelos na correnteza. A presença de Lucana na minha mente culpada – o cheiro dela, de sassafrás, que chega do extenso de cercanias em grossas ondas de luz salina, beatifica de longe, aclara os lençóis, os olhos azuis, cabelos pretos dessa morena e penetra, essa presença de Lucana, a minha cabeça cravada com os espinhos da culpa. Penso que eu não deveria ser como as virgens imprudentes e que devia andar sempre com uma caixa-de-fósforos no bolso ou ser como a nadadora que esquece nas águas formas exóticas de jarras. Um pedaço azul de sabonete e nunca mais vi sequer um resquício dos olhos azuis, cabelos pretos. Apenas restou, de nosso encontro, o que resta de tudo: a brisa, o incenso, o mar como uma louça que se quebra nas pedras.

Alessandro Gatto



Ver performance
de Yves Klein


http://www.youtube.com/watch?v=4eguBFbC11E
Yves Klein nasceu na França, em 1928, tendo falecido em 1962. Pintor, escultor e escritor francês, Yves Klein foi, desde cedo, influenciado pela arte abstrata de sua mãe Marie Raymond. Não teve educação artística formal, mas começou a fazer as suas primeiras tentativas na pintura em 1946, ano em que conheceu Arman, a quem se associou mais tarde no movimento Nouveau Réalisme. Entre 1949 e 1950, trabalhou na loja de molduras de Robert Savage, onde aprendeu as técnicas da pintura e da aplicação de folha de ouro. Em 1950 expôs em Londres os seus primeiros trabalhos e, no ano de 1953, exibiu uma série de pinturas monocromáticas em Tóquio/Japão. Em 1956, Klein alcançou grande notoriedade junto do público e da crítica, sobretudo através da exposição Yves: Propositions monochromes, na Galeria Colette Allendy, na Paris incandescente. Em 1958, executa os primeiros Anthropométries: impressões de corpos femininos cobertos em Azul, e apresenta os primeiros quadros vazios. Em 1960 foi membro co-fundador dos Nouveaux Réalistes e cria Cosmogonies, imagens criadas pela força dos elementos naturais (chuva, vento, folhas). No ano de 1961 realiza o primeiro relevo planetário e as primeiras imagens de fogo. Em 1983 tem uma retrospectiva importante no Centro George Pompidou (Paris, França) e, onze anos depois, em 1994, no Museu Ludwig (Colônia/Alemanha).