sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Uma pomba espetada entre as coxas gordas

Hilda Hilst

Pensar que isso sou eu. e o morto que há em mim. o roto. o decomposto. alguém lá dentro me diz que estou sendo injusto. que há mortos muito mais putrefatos, a cara expelindo ranço e desgosto, que aquele, o Oscar, o Fingall, o O'Flahertie Wills, aquele, o Wilde, quando morreu, tudo estourou dentro dele, que o estômago explode, é o que dizem quando se está na pira, na Índia talvez, e ouve-se uma explosão a muitos passos dali. eu e minha "intensa fisiose", como dizem os médicos, o que você come, hen, um saco de ventos? engoliste, Vittorio, o fole de pele de boi onde Éolo guardava os ventos? palavras é o que guardo no meu fole. cabeludas, glabras, macias umas, outras enfezadas, duras, arames eriçados iguaizinhos aos pêlos do púbis de Licina-Juno, sim porque a essa altura já lhe vi inteira, uma pomba espetada entre as coxas gordas. foles, púbis, eu ofegante soprando na cabeluda. em seguidinha cansei. pedi que se masturbasse à minha frente e ao mesmo tempo fingisse que lia. que livro devo ter nas mãos? o código penal, naturalmente. que eu gostava assim, ver a mulher como se ela estivesse mesmo a sós, largadona distraída...

ela: nunca fico largada

ah, é? nunca mesmo?

nem fico distraída

nem quando caga?

ofendeu-se como se eu a tivesse espancado. fui vestindo a cueca, as calças, a camisa e ia me mandando quando Licina

por favor, não vá

eu inteiro vestido reclamei, ah, não, vou sim, tenho horror de ficar me despindo a toda hora. atirou-se aos meus pés. fiquei pasmo. há muitos anos mulher nenhuma me fazia isso. só duas o fizeram, eu aos trinta. não era pela minha pica, não, era aquele saco de dinheiro que eu já costumava dar. mas Licina-Juno ainda não tinha visto o meu dinheiro. como qualquer rábula, deve lhe ter sentido o cheiro. e aproveitando o perfeito dela já estar no chão, só desabotoei a braguilha e enfiei-lhe o lambaio na boca. estrebuchou um pouco mas ordenou-se em seguida, ritmada e nobre. que grosseria! tal pai, tal filho. meu deus, vou escrever a Dom Deo, meu amigo bispo. no colégio era só Deozinho, magrela, espinhudo, triste. o cajado de Deozinho era mínimo, uma bimbinha de nada. no banho sempre depois de ver o meu lambaio ele chorava e dava uns taponas na bimbinha dele: fedelho, tu nào serve pra nada. chegou a amortalhar a bimba num trapo roxo, olhava lúgubre para o grão de milho e dizia solene: non habeo usum. era inteligentíssimo. e que memória! sabia Vieira de cor. enquanto ele dizia non habeo usum, eu que nada sabia (e só para atormentá-lo) colocava um espelhinho frente ao meu lambaio e radioso declamava: speculum et lambaius majestatis. ele ria-se a valer. um dia um novato quis lhe comer o macio, e Deozinho disse-lhe solene: amigo, meu rosquete é minha cidade, e de início: non ingredietur urbem hanc, nec mittet in eam sagittam et nec circumdabit eam munitio, e tudo isso era Vieira e queria dizer que ele não entraria na cidade, que não lançaria dentro dela as suas setas e que não a poria a cerco. o Dinhas, o novato massudo que lhe queria o zenóbio, ficou ali aparvalhado, a mandíbula caída, a linguona em ponta no palato e Deozinho ria, ria, e nós todos também. com o tempo Deozinho foi ficando Dom Deo. era lírico, suave com todos e severo consigo mesmo. hoje é bispo. nos confins do país. lá em Itiquira. dizem que o Vaticano lhe tem horror. Dom Deo só cria problemas. penso que está lá para morrer. agora me veio o poema que ele jovenzinho a todo instante declamava, os olhos cheios d'água: "Morreu. Deitada num caixão estreito, pálida e loira muito loira e fria. O seu lábio tristíssimo sorria, como num sonho virginal desfeito. Tinha a cor da rainha das baladas, e das monjas antigas maceradas, no pequenino esquife onde dormia. Levou-a a morte na sua garra adunca, e eu nunca mais pude esquecê-la, nunca. Pálida e loira muito loira e fria". um dia eu disse esse poema ao Dantas e ele achou que era Cruz e Souza. não sei. todos nós o sabíamos de cor. um dia perguntei a Dom Deo, o poema te lembra alguém? sim, Vittorio, uma irmãzinha, não irmãzinha de sangue, uma irmãzinha da alma que se foi. era teu amor? era eu mesmo, Vittorio, se o lá de cima me tivesse feito fêmea.

Carta de Dom Deo

Só vejo o dorso de Deus, Vittorio. tem listras. nunca lhe vejo o rosto. certa vez tentou acariciar-me, e fez-me uma ferida. aqui em Itiquira tudo é fome. o lugar foi esquecido. eu e meus pobres também. há um leprosário a 5Km daqui e plantamos o dia inteiro numa terra que não é nossa. ajudamos os doentes. há uma pequena capela. e gentes e muitos cães, todos magros e tristes. eu canto às vezes. a canção do sol. diz o estribilho que "o sol ilumina aquele que capina". quando há fome a poesia é também pobre. por que me escreves? dizes que precisas da minha benção. minha alma é mais magra do que a tua, Vittorio. Deus ama a indiferença e a aspereza. descobri há pouco. também é possível domar Deus dentro de nós. blasfemando somos um pouco santos, sabias? excitamos o OUTRO para que não durma tanto. tu és melhor do que eu. acaricio tanto a meu Deus, tanta volúpia que hoje tenho as mãos feridas e muitas vezes sangro. temos a mesma idade, Vittorio, eu e tu, eu e Deus. é um velho também, Ele. mas forte como um tigre-menino. tem horror que se lhe saiba o nome. certa noite, intuí, então chamei-O. lanhou-me todo o ventre. as coxas. a semente. uma voz delicada e sonolenta vinda das folhas altas de umas árvores negras se expressou assim: Dom Deo, se repetires o Meu Nome ainda que às escondidas, dentro da pedra, ou dentro da tua própria barriga, hás de perder a vida. e entendi que não se referia a esta vida, esta aqui da Terra, não Vittorio, ia perder para sempre a mais remota possibilidade de voltar a ser. temo-O agora e contando-te, tremo. não contes a ninguém o que te escrevo. se souberem disso, as gentes, hão de ficar tão desamparadas como tua amiga Hillé, aquela de quem tanto gostavas. soube por uma sua vizinha, uma destrambelhada, Luzia, que Hillé deixou-se morrer embaixo de uma escada. e que sua última amiga foi uma porca. Hillé chamava-a apenas com este nome: senhora P. disse-me também Luzia que a senhora P morreu com Hillé, à mesma hora, e no mesmo dia. caríssimo: lembra-te se puderes, de nós daqui. roupas e comidas são bem-vindas. e cuidado! não tentes adivinhar o rosto Daquele Dorso. guarda-te de geometrias e luzes. a mais ínfima busca ao redor dessas duas... cuidado! guarda-te.

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