sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Axelrod

Hilda Hilst

(Sugestão: leia este texto ouvindo um som mântrico qualquer,
um que lhe coloque em transe)

Unir-se, Axelrod, unir-se a alguém, é disso que precisas. A quem? À História? Como se ela fosse alguém essa falada História, penugenta andando por aí, como se ela fosse real, olha aí a História, tá passando aí, olha pra ela, olha a História te engolindo, jantas hoje com a História, os filhinhos da História, Marat marx mao, o primeiro homicida, o segundo tantas coisas humanista sociólogo economista agitador, ó tão fundo esse segundo, tão História tão Estado. E que terceiro, ó gente, que terceiro.

já leu Marx?

maçante aquilo tudo

mas leu?

sim, o que pude conseguir, as cartas aos amigos dizem mais dele do que tudo

que límpido ordenado, que precisões hen? liberdade pra quê? liberdade têm os outros de te montar em cima, de te arrancarem o naco de carne da boca, tens medo de que te tirem o quê se não tens nada?

Marx meu amor, te amei tão História, Mao e Shu vocês também, que soerguido vital, que caminhadas que floração, que linguagem, e fui relendo, anotando, cintilantes esquemas, destrinchações, como se eu fosse jantar com a História logo mais, como se eu fosse meter com a História, as pernocas abertas da História, as coxonas cozidas de tão faladas, o vaginão da História, vermelhusco, baboso, e o meu fiapo magro nadando lá por dentro

já leu tudo, menino? já sabe tudo de mim, como me fiz, o que sou?

sim dona História

viu que gente de primeira já andou por aí?

sim dona História

e que sangueira hen filho? Que linguagens, que porte, que pompas

Vou entrando na História, endurecendo, vou morrendo explodindo em faíscas, a cavernosa vai me comendo, ímã gozoso, já não sou Axelrod Silva, sou nomes, fachadas, sou máscara, já não penso, pensam por mim, sou credo, sou catecismo, sou bandeira, sou acorde, sou principalmente Político, o peito teso empinado, tenho idéias mas já não sou Axelrod Silva, tudo o que quiserdes, menos eu, a História me chupa inteiro, a língua porejando sangue

goza filhinho

sim dona História, vou indo, estou cheio de idéias, tenho dúvidas, tenho gozos rápidos e agudos, vou te apalpando agora, o povo me olha, o povo quer muito de mim, gosto do povo, devo ser o povo, devo ser um único e harmônico povo-ovo, devo morrer pelo povo, adentrado nele, devo rugir e ser um só com o povo, Axelrod-povo, Axelrod-coesão, virulência, Axelrod-filho do povo, HISTÓRIA/POVO, janto com meus pais, sopa de proletariado, pãezinhos mencheviques, engulo o monopólio, emocionado bebo a revolução, lento vou digerindo o intelecto, mas estou faminto, estarei sempre faminto, cago capitalismo, o lucro, a bolsa de títulos, e ainda estou faminto, ô meu deus, eu me quero a mim, ossudo seco, eu.

doutor, o trem tá parando, vai parar aqui um pouco.

chegamos?

imagine doutor, ainda falta, o senhor está suando muito, quer um refresco? posso ajudá-lo?

vai para aqui?

uma boiada, e ao mesmo tempo uns enguiços na máquina, uma hora talvez, não mais

devo descer então?

esticar as pernas doutor, é melhor, o senhor está suando muito, uma mancha vermelha aí

onde?

na sua testa, dormiu de mau jeito, não foi? a testa encostou nesse duro da madeira, não foi?

Vermelhosuras da História, devo descer mas ela não me larga, grudou-se, chutar a cabeça da História, chutar a bola-cabeça em direção à trave, também joguei sim senhores, joguei, ia chutando a cabeça de muitos naquela única bola, esfacelei uns branquicentos moles, a mim mesmo chutei, chutei minha comensurabilidade, meu limite, meu finito fibroso, minha putrescível cabeça, minha vermelha dura fixa cabeça, ah um ocre que vi e não me esqueço, num canto a parede rebrilhava num branco exibido obsceno e no canto aquele ocre, esqueceram-se, eu perguntei, esqueceram-se de pintar aquilo ali? Aquilo onde? cruzes, cara, aquele ocre ali, olhavam-me, não viam ocre algum, ah mas que ocre, senhores, que ocre, como a fundura de um peixe, escamas ocres lá no fundo, como certos chamalotes, um vermelho-ocre tafetoso, uns estilhados de ruído, aquele ocre ali, que fogaço mínimo, mas que luz a luz daquele ocre. Devo suportar o que me vem, vem vindo, minha cabeça de laca, de sangue esmaltado, efêmero tu mínimo, Axelrod, habitante de um planeta mínimo, bola planeta de uma risível estrela desta Via, lactente pequenino se pensando inchado em abastança, ridículo pequenino abasbacado, laca diluída nas tuas veias, coágulos, então Axelrod te moves quando pensas? ou circulas no teu ridículo espaço com a pompa dos pavões, o peito purgando adjetivos, togado, promotor, te acuso Axelrod Silva de se supor a si mesmo um pretenso diferenciado

de fornicar a História com teu magro minguado. Te acuso de indecências, de pensamenteios, de friorentas idéias, nunca te moverás, maquinista do Nada.

podemos descer juntos, o senhor quer? há uma colina mais adiante e abetos

como?

não nada, sim, pode ser bom caminhar até a colina.

foi isso que pensei, andar um pouco enquanto o trem, olhe, acenderam as luzes, podemos ver o trem de longe iluminado.

Esguio, de passadas lentas, a nuca magra, o olhar é de um cinzento alagado, tenso de ombro e omoplata, discorre pausado de topografias, que à nossa frente, esta, se parece a outras que já viu mas não se lembra onde, que viu tão pouco de tudo e que por isso deveria lembrar-se desse pouco onde, olhe ali, há queimadas, se não vou me cansar até o pequeno topo, não não, imagine eu digo, também nem tanto, quarenta e dois anos ainda suportam um passeio na tarde, e há esse frescor, esse caimento, o cheiro dos abetos. Como? O cheiro desses verdes, ah sim, parecem estranhos, o mundo também, a forma das coisas, é um gavião lá no alto? Sim, pode ser, e me diz que nào quis dizer que eu lhe parecia velho, que nem pensou nisso quando perguntou se eu não cansaria até o pequeno topo, digo que não me importo com esses luxos da idade, que aos vinte temos muitas certezas e depois só dúvidas.

certeza de nada eu tenho

exceção. Aos vinte pontifiquei, tinha um orgulho danado, um visual pretensamente sábio

como?

discorria claro sobre as coisas, pensava que via

o senhor é professor?

sim, História

Apressado me interrompe, entre eu e ele um espêsso, porque me interrompe? entre eu e ele uns afastados, parece desejar chegar ao topo, sim porque deve ser bonito ver o trem lá embaixo iluminado, da História diz que não sabe nada, da sua própria estória sim, começa a correr como se me esquecesse, bem assim também não, correr na subida já maltrata coronárias coração, escuto-lhe a risada quinze passos acima, vejo-o de frente, longo, um nítido de sol numa das faces, não, não devo subir mais, o espesso desmanchando-se, está vivo à minha frente como se fosse o primeiro vivo visto, digo que o moço está tão vivo e tão adequado àquele espaço, tão singularmente colocado que

vamos, venha, ou desço para te ajudar?

Desço para te ajudar, íntimo, caloroso, estendeu os braços, amplo, lento pensando o passo vou subindo, o visível pensado me diz que há um medo se construindo em suor e vazios, o visível pensado não nomeia este medo, não deveria subir mas vou subindo, amasso com meus pés os tufos verdes, fixo-me nos sapatos, moles, úmidos, as meias molhadas, um ridículo Gólgota, sorrio, falta um, não deveriam ser três? Ele e os dois, e faltam cruzes, os dois viram-no subir lá do alto das cruzes? E faz falta a multidão, os lamentos, e a hora da subida não foi esta, subiu a que hora Jeshua? ao meio-dia? A hora, seis e meia a minha, ridiculez de subida, a camisa empapada, tenho cheiros? cheiro como um homem, aprumo-me, sou um home, tropeço, estou de bruços, de bruços pronto para ser usado, saqueado, ajustado à minha latinidade, esta sim, real, esta de bruços, as incontáveis infinitas cósmicas fornicações em toda a minha brasilidade, eu de bruços vilipendiado, mil duros no meu acósmico buraco, entregando tudo, meus ricos fundos de dentro, minha alma, ah muito conforme seo Silva, muitíssimo adequado tu de bruços, e no aparente arrotando grosso, chutando a bola, cantando, te chamam de bundeiro os ricos lá de fora seo Silva brasileiro, seo Macho Silva, hôhô hôhô enquanto fornicas bundeiramente as tuas mulheres cantando chutando a bola, que pepinão seo Silva na tua rodela, tuas pobres junturas se rompendo, entregando teu ferro, teu sangue, tua cabeça, amoitado, às apalpadelas, meio cego cedendo, cedendo sempre, ah Grande Saqueado, grande pobre macho saqueado, de bruços, de joelhos, há quanto tempo cedendo e disfarçando, vítima verde amarela, amado macho inteiro de bruços flexionado, de quatro, multiplicado de vazios, de ais, de multi-irracionais, boca de miséria, me exteriorizo grudado à minha História, ela me engolindo, eu engolido por todas as quimeras.

machucou-se

nem um pouco

Trêmulo me levantando, eu Axelrod me levantando porque o Grande Saqueado deixo ali de bruços, descola-te de mim, eu sozinho sou mínimo, alavancas do sonho, as impossíveis para te levantar, idéias palavras abstrações textos dialéticas, impossíveis alavancas de sonhos impossíveis, beijo-te as nádegas, brasilíssima fundura, teus gordos aparentes, beijo lívido tua escura saqueada rodela, te pranteio

me dá tua mão Axel

A mão do moço, pesada, curta, seca, não está em emoção, a palma toca a minha, molhada, a voz num tom de sacristia, baixa respeitosa, me dá tua mão, Axel, (comeu-me o sufixo, não importa) talvez me veja um pouco abade, abacial, tenho ares de, apesar da magreza, abade Axelrod, ali vai Axel o abade, amanhã ventrudo, tropeçou, vê só, me dá a tua mão, Axel, que tons, como se os turíbulos tivessem passado há um segundo, como se eu lhe tivesse dado escapulários, obrigado abade Axel, posso lhe beijar a mão? Vou me levantando inteiro abade, curvado vou me fazendo, tento chamar a velhice, fazer ares de, quero ser velhíssimo neste instante, e agachado correndo, num urro senil estaco. E numa cambalhota despenco aqui de cima, nos ares,

morrendo, deste lado do abismo.

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