quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Chego ao casarão e uma chuva noturna, com a lira destemperada, lava tudo, desde a carniça do sovaco da cárie que trago na alma até às plantas ressequidas a chuva repentina lava. Ia entrar, mas prefiro fechar os olhos e relembrar aquela história que me contou um velho marujo no bar Gallo del Viento. Dizia-me ele que, em sua casa à beira do ancoradouro, havia uma ave-do-paraíso morta em cima da geladeira Cônsul. Ave-do-paraíso que morreu, depois que provou carne de cavalo estragada. Cavalo que morreu de tanto carregar baldes de água para apagar o fogo que se alastrava pela casa. Fogo causado pela queda dos longos círios nas cortinas de linho branco. Círios postados ali para o velório, enquanto as labaredas iam e vinham lambendo os móveis, os tapetes. Velório? É, velório de sua mulher, que estava na sala de jantar, quando ele entrou desesperado em casa e a matou, pensando que ela fosse um gatuno, com certeiro pontaço de faca na altura do coração. Claro que não ri da história do marujo. Me benzi com peixe e talos de arruda, parti águas de oceano para deslocar abismos, caí em cisternas e escutei Rimski-Korsakoff num disco de vinil usado e se eu cerrasse os olhos agora e escutasse com atenção o séptuor que a senhora do gelo desfia na varanda? O séptuor que diz assim

HOSOMI

Piscar do espírito:
o paraíso
no sonho
te esquece entre águas e conchas
e, súdito,
ao acordar
te respira

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