terça-feira, 9 de junho de 2009

Fui internado ontem no leprosário de Santa Água. Sofro, aqui, o perverso gozo da derrota inteira, misturado a cabaças com restolhos de sopa e a essa cabeça de bagre – o Diretor-geral do leprosário – o senhor Kault – que se julga gênio, quando o único que pode ser é cabeça de bagre –, e só a tempestade o curaria. O Diretor-geral do leprosário nunca ousa vencer as palavras ou quebrar a gramática, por isso crê na gramática e crê no Deus.

Para continuar inteiro em meio ao vento que espalha os incensos, apaga as velas, afunda os navios ao largo, finjo, esquivo-me, como se eu fosse barata com caspa na sobrancelha e fedesse à carniça.

Nesse inferno onde respiro, dia-a-dia, nacos de mim caem no quarto, no banheiro, no pátio do leprosário de Santa Água. Aprendo, com certa dificuldade, que apenas o silêncio permite desvelar a parte interna de cada coisa contemplada. Depois que sair do leprosário, recordarei com saudade da cozinheira do leprosário, a preta velha Oriki, da monotonia de sua vida cotidiana. Ela será, para mim, a recordação dos amores que tive ou das ondas que nunca foram de ninguém.

A preta velha Oriki – os olhos carcomidos, a língua sucumbida – aprecia lundus e batuques do Congo –, dança o próprio vazio, traz uns olhos a pensar para dentro coisas de fora, e a minha alma se aclara com essa dança da chuva que a preta velha Oriki espalha pelos corredores gelados do leprosário.

Não tenho próximo de mim a figura da ninfa nua no cavalo de água. Será, talvez, por isso, que eu fique horas a observar a preta velha Oriki dançar? Agora ela é, por fora, o que sempre foi no íntimo.

No escritório do leprosário de Santa Água, o senhor Kault coça uma chaga na clavícula. Já sabe que contraiu a lepra, que mora numa Casa de vidro, com escorpiões vivos que podemos ver daqui. Os telhados da Casa de vidro fedem a urina. Sim, a lepra nada sabe da sombra da oliveira ao meio-dia. Sabe de jardins escorraçados, de câmaras de gás, de corpos tocados pela cinza das horas. Por causa disso, nesse leprosário de Santa Água, não sou capaz, ainda, de um sentimento que dure como duram as pedras – serenas – na alma. Tudo em mim é outra coisa: uma impaciência de tigre atrás da neblina, um desassossego crescente e sempre igual, que me faz vociferar que tudo me interessa e nada me prende. Leio um poema:

Um livro

Um livro tem

Um livro tem de ser

Um livro tem de ser um

Um livro tem de ser um machado

Um livro tem de ser um machado para

Um livro tem de ser um machado para o

mar gelado

dentro

de

nós

A respiração sufocada da preta velha Oriki; não a escuto, estou pensando em outra coisa, estou pensando, por exemplo, que nada deveria escurecer o desejo, e que nada nunca destroça as águas do oceano.

Hoje é domingo, não recebi visita. Aqui, nesse leprosário de Santa Água, se narro obscuramente a minha vida sem história, é porque nela só houve esta Casa de vidro e, aos escorpiões que vejo nada digo, nada tenho que dizer.

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