quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Com estas 12 marinhas do fotógrafo

Aubrey Bodine eu faço

um In memoriam a meu pai

Franz Joseph Karl,

falecido há dois anos em Berlim.

Meu pai era marinheiro.

Escutar Debussy

http://www.youtube.com/watch?v=F5A4CkUAazI&feature=related

Van Gogh (1853-1890)


Charles-Émile Reynaud (1844-1918) foi o pioneiro dos filmes animados.


O primeiro desenho de Charles.





Ver o primeiro

desenho animado

do mundo:

Autour d’une cabine,

by Emile Reynaud,

em 1894.

http://www.youtube.com/watch?v=A5MXcxaRXN

Stéphane Mallarmé, cujo verdadeiro nome era Étienne Mallarmé, nasceu em Paris: 18 de Março de 1842 e morreu em Valvins: 9 de Setembro de 1898.

Última visita

a Mallarmé

Quando comecei a freqüentar Mallarmé em pessoa, a literatura não me era quase mais nada. Ler e escrever me pesavam, e confesso que me resta qualquer coisa desse aborrecimento. A consciência de mim mesmo por ele mesmo, o esclarecimento dessa atenção, e o cuidado de desenhar limpidamente minha existência não me deixava quase nada. Esse mal secreto afasta das Letras, nas quais tem, entretanto, sua origem.

Mallarmé, todavia, figurava em meu sistema íntimo de personagem de arte sábia e o supremo estado da ambição literária a mais elevada. Tinha feito de seu espírito uma profunda companhia, e esperava que a despeito da diferença de nossas idades e do descarte imenso de nossos méritos, o dia chegaria em que eu não recearia de lhe propor minhas dificuldades e minhas opiniões particulares. Isso não era o que me intimidava, porque ninguém me foi mais doce nem mais deliciosamente simples que ele; mas me parecia então que existia uma espécie de contraste entre o exercício da literatura e a perseguição de certo rigor e de uma inteira sinceridade do pensamento. A questão é infinitamente delicada. Deveria eu escondê-la de Mallarmé? Eu o estimava e o colocava acima de tudo; mas eu tinha renunciado a adorar aquilo que ele tinha adorado toda a sua vida, e a que ele tinha tudo ofertado, e não encontrava mais a coragem de lhe fazer entender.

Não via, entretanto, homenagem mais verdadeira a lhe render que lhe confiar meu pensamento, e de lhe mostrar quantas pesquisas, e as análises mais finas e mais preciosas das quais elas procedem, tinham transformado a meus olhos o problema literário e me tinham conduzido a abandonar a partida. É que os esforços de Mallarmé, muito opostos às doutrinas e às preocupações de seus contemporâneos, tendiam a ordenar todo o domínio das Letras para a consideração geral das formas. É extremamente notável que ele tenha chegado, pelo estudo aprofundado de sua arte, e sem conhecimentos científicos, a uma concepção tão abstrata e tão próxima de especulações as mais elevadas de algumas ciências. Ele jamais falava, de resto, de sua idéia senão por figuras. O ensinamento explícito o repugnava estranhamente. Seu ofício, que ele odiava, estava por qualquer coisa nessa aversão. Mas eu, ensaiando de me resumir suas tendências, permitia-me interiormente de designá-las a minha maneira. A literatura ordinária me parecia comparável a uma aritmética, quer dizer, à busca de resultados particulares, nos quais a gente mal distingue o preceito do exemplo; aquela que ele conservava me parecia análoga a uma álgebra, porque ela suporia a vontade de colocar em evidência, de conservar através dos pensamentos e de desenvolver por eles mesmos, as formas da linguagem.

“Mas no momento em que um princípio foi reconhecido e entendido por alguns, é totalmente inútil perder tempo com suas aplicações”, eu me dizia...

O dia que esperava jamais veio.

*

Vi pela última vez Stéphane Mallarmé em 14 de julho de 1898 em Valvins. O almoço terminado, conduziu-me a seu “gabinete de trabalho”. Quatro passos curtos, dois longos; a janela aberta a Seine e à floresta através de uma folhagem toda rasgada de luz, e os mínimos estremecimentos do rio resplandecendo escassamente repetidos pelos tabiques.

Mallarmé se inquietava dos supremos detalhes da fabricação do Lance de dados. O inventor considerava e retocava a lápis esse engenho totalmente novo que a imprensa Lahure tinha aceitado construir.

Não havia ainda a empresa, nem o sonho de empreender, de dar à figura de um texto uma significação e uma ação comparáveis àquelas do texto mesmo. Como o uso ordinário de nossos membros nos faz esquecer sua existência e negligenciar a variedade de seus recursos, e como somente um artista do corpo humano nos permite ver nele às vezes todas as suas flexibilidades, ao preço de uma vida que ele consome em exercícios e que explora aos perigos de seu desejo, assim o uso habitual da palavra, a prática da leitura cursiva e aquela da expressão imediata, debilitando a consciência de seus atos muito familiares e abolindo até a idéia de suas potências e de suas perfeições possíveis, – a menos que sobrevenha e não se consagre qualquer pessoa estranhamente desdenhada das facilidades de seu espírito, mas singularmente atenciosa àquilo que pode produzir os mais desatentos e mais desligados.

Eu estava aos pés dessa pessoa. Nada me dizia que jamais a reveria. Não havia, no dourado do dia, corvo encarregado de pressagiar.

Tudo estava calmo e seguro... Entretanto quando Mallarmé me falava, o dedo sobre a página, lembrava-me que meu pensamento se colocava a sonhar esse momento mesmo. Dar-me-ia distraidamente um valor como absoluto. Sonhava, próximo dele vivo, com seu destino como terminado. Nascido para a delícia de uns, para o escândalo de outros, e maravilha para todos: para estes que, da demência e do absurdo; para os seus, maravilha do orgulho, da elegância e do pudor intelectual, bastaram-lhe alguns poemas para recolocar em questão o objeto mesmo da literatura. Sua obra difícil de entender, impossível de negligenciar, dividia o povo letrado. Pobre e sem honrarias, a nudez de sua condição aviltava todas as vantagens dos outros; mas estava assegurado, sem as procurar, das fidelidades extraordinárias. Quanto a ele, no qual o sorriso do sábio, de vítima superior, acabrunharia devagar o universo, jamais tinha pedido ao mundo aquilo que contém de mais raro e de mais precioso. Ele o encontrava em si.

*

Fomos ao campo. O poeta “artificial” colhia flores as mais ingênuas. Acianos e papoulas carregadas nos braços. O ar era flama; o esplendor absoluto; a morte impossível ou indiferente; tudo formidavelmente belo, abrasador e dormente; e as imagens do sol tremiam.

Ao sol, na imensa forma do céu puro, sonhava com um recinto incandescente onde nada de distinto subsiste, onde nada dura, mas onde nada cessa; como se a destruição a si mesma se destruísse, apenas realizada. Perdia o sentimento da diferença entre o ser e o não ser. A música por vezes nos impõe essa impressão, que está além de todas as outras. A poesia, pensava eu, não é ela também o jogo supremo da transmutação das idéias?

Mallarmé me mostrou a planície que o verão precoce começava a dourar: “veja, diz ele, é o primeiro toque de címbalo do outono sobre a terra”.

Quando veio o outono, ele não estava mais.

Paul Valèry

Traduzido por Márcio Freire