sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009


Capa de Casa de água.

Um dos grafismos de Casa de água.

A editora Letradágua está lançando
Casa de água
,
uma edição comemorativa de meus 25 anos de escritor.

Casa de água é uma antologia que reúne 200 poemas. Nessa antologia também foram incluídos 30 desenhos de minha autoria.

Eis os títulos que compõem o

Casa de água
:

1. Tema para romance;
2. No verão amadurecem os chapéus;
3. Desenhos mínimos de rios;
4. Diário estrangeiro;
5. Travesseiro de pedra;
6. Brisa em Bizâncio;
7. Se eu mesmo fosse o inverno sombrio.


Caso v. queira adquirir o livro

Casa de água
, é só entrar em contato com o Antonio, dono do Sebo Dom Quixote, na cidade de São Bento do Sul/SC, e solicitar um exemplar a ele através do

contato@sebodomquixote.com.br

Telefone do Sebo Dom Quixote: 47-3633-5365.

www.sebodomquixote.com.br

Detalhe: o Casa de água só pode ser encontrado no referido sebo.

O preço do livro é de R$ 30,00 + o valor do impresso registrado (que custa mais ou menos R$ 4,00).

Divulguem, por favor, essa minha proposta entre amigos e conhecidos, porque todos sabem o quanto é difícil vender livro nesse país das bruzundangas.

O melhor dos abraços.

Fernando José Karl


Fernando Pessoa (1888-1935).

Um poema é a projeção de uma idéia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão-somente o meio de que a idéia se serve para se reduzir a palavras.

Não vejo, entre a poesia e a prosa, a diferença fundamental, peculiar da própria disposição da mente, que Campos estabelece. Desde que se usa de palavras, usa-se de um instrumento ao mesmo tempo emotivo e intelectual. A palavra contém uma idéia e uma emoção. Por isso não há prosa, nem a mais rigidamente científica, que não ressume qualquer suco emotivo. Por isso não há exclamação, nem a mais abstratamente emotiva, que não implique, ao menos, o esboço de uma idéia.

Em tudo que se diz – poesia ou prosa – há idéia e emoção. A poesia difere da prosa apenas em que escolhe um novo meio exterior, além da palavra, para projetar a idéia em palavras através da emoção. Esse meio é o ritmo, a rima, a estrofe; ou todas, ou duas, ou uma só. Porém menos que uma só não creio que possa ser.

A poesia é superior à prosa porque exprime, não um grau superior de emoção, mas, por contra, um grau superior do domínio dela.

Na prosa mais propriamente prosa – a prosa científica ou filosófica –, a que exprime diretamente idéias e só idéias, não há mister de grande disciplina, pois na própria circunstância de ser só de idéias vai disciplina bastante.

Na prosa mais largamente emotiva, como a que distingue a oratória, ou tem feição descritiva, há que atender mais ao ritmo, à disposição, à organização das idéias, pois essas são ali em menor número, nem formam o fundamento da matéria.

Na prosa amplamente emotiva – aquela cujos sentimentos poderiam com igual facilidade ser expostos em poesia – há que atender mais que nunca à disposição da matéria, e ao ritmo que acompanhe a exposição. Esse ritmo não é definido, como o é no verso, porque a prosa não é verso.

Campos é um grande prosador, um prosador com uma grande ciência do ritmo; mas o ritmo de que tem ciência, é o ritmo da prosa, e a prosa de que se serve é aquela em que se introduziu, além dos vulgares sinais de pontuação, uma pausa maior e especial, que Campos, como os seus pares anteriores e semelhantes, determinou representar graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha disposta como o que se chama um verso.

A disciplina é natural ou artificial, espontânea ou refletida. O que distingue a arte clássica, propriamente dita, a dos gregos e até dos romanos, da arte pseudoclássica, como a dos franceses em seus séculos de fixação, é que a disciplina de uma está nas mesmas emoções, com uma harmonia natural da alma, que naturalmente repele o excessivo, ainda ao senti-lo; e a disciplina da outra está em uma deliberação da mente de não se deixar sentir para cima de certo nível.

A arte pseudoclássica é fria porque é uma regra; a clássica tem emoção porque é uma harmonia. Quase se conclui do que diz Campos, de que o poeta vulgar sente espontaneamente com a largueza que naturalmente projetaria em versos como os que ele escreve; e depois, refletindo, sujeita essa emoção a cortes e retoques e outras mutilações ou alterações, em obediência a uma regra exterior. Nenhum homem foi alguma vez poeta assim.

A disciplina do ritmo é aprendida até ficar sendo uma parte da alma: o verso que a emoção produz nasce já subordinado a essa disciplina. Uma emoção naturalmente harmônica é uma emoção naturalmente ordenada; uma emoção naturalmente ordenada é uma emoção naturalmente traduzida num ritmo ordenado, pois a emoção dá o ritmo e a ordem que há nela, a ordem que no ritmo há.

Na palavra, a inteligência dá a frase, a emoção o ritmo. Quando o pensamento do poeta é alto, isto é, formado de uma idéia que produz uma emoção, esse pensamento, já de si harmônico pela junção equilibrada de idéia e emoção, e pela nobreza de ambas, transmite esse equilíbrio de emoção e de sentimento à frase e ao ritmo, e assim, como disse, a frase, súdita do pensamento que a define, busca-o, e o ritmo, escravo da emoção que esse pensamento agregou a si, o serve.


Fernando Pessoa

Robert Van der Hilst, sem data

A RESPIRAÇÃO DOS VELHOS

Cobrir-se com o plânctum da alegria,
antes que o langor da preguiça

nos olvide entre ceras.
O nada da brisa, a perfeição da leveza

nesse terreno coberto de bambus.
Quantas noites mansas escuto

grafadas em tábuas de caligrafia chinesa?
Construídas com ossadas de velhos sábios,

as tábuas guardam a respiração deles.
A caligrafia salva do esquecimento:

soluços, amor, relva, idioma

de velhos sábios que reverenciam o silêncio
nesse terreno coberto de bambus.


A banda inglesa Cold Play.

Escutar Viva la vida,

do Cold Play

http://www.youtube.com/watch?v=O5I3RPbS8aI&feature=related

Francis Chit, 1886

A iguana em meio ao juncal é bom, o salmo 69 não é mau. Sem ser da mesma linhagem que a do salmo, aquela em Villa da Concha, segundo me confidenciam, é Lucana na Casa de Água. Ela vai grafando linhas vazias no dorso escamoso da iguana. Ela – água de chafariz – que cai aquática e ressuscita aquática. Folheia o missal das pedras, e particularmente a brisa. Possui a técnica de o fazer, do missal das pedras, uma gravura de fino cristal. Lucana retorna à Casa de Água onde reside, entre azulejos da parede, arcas-de-ferro e mandacarus do sertão. Ela e o suntuoso vendaval. Uma neblina se dissipa. A partir de um átrio aberto, espia-se a monotonia da Casa de Água. Jorra o cântaro a gramática líqüida ou o fluxo solar da indecisão aquática. O peixe principia a feder pela cabeça. Casa de Água principia a clarear pelas telhas. Se o peixe é de pedra nunca fede. A partir de um átrio aberto, erra a epifania, não em lavanda, mas em cacto ou apenas arabesco de cacto. Logo na entrada se vislumbra o crânio de uma vaca com rosas da caatinga e um árido chão. Lucana abana moscas, vocifera claros nomes serenos. Simplificada a Casa de Água até o rigor franciscano de uma gravura de Balthus, e onde por único adorno, além de tomos de Xenofonte numa estante de cedro, há cactáceas em púcaros de barro. A um recanto do living Lucana, a ler duas folhas de prosa, aproxima da talha das abluções o lado amargo da língua, depois vai regar o silêncio do Jardim de Pedra, vai regar o jasmineiro, o corvo, o biombo de fino papel japonês, a âncora. Com o viscoso lodo das palavras, com o granizo e com a nevasca das impressões verbais, desvela-se a seqüência harmônica da Casa de Água de Lucana, casa que é um sonho onde não se dorme, sonho vivo, fora do sono, entrelaçado silêncio de cacto e sopro. Jardim de Pedra que a raga indiana rega, também cheira a Vazio e viço de alecrim. Tudo está em chamas: a retina, a coróide, a alta árvore na audição de Orfeu. Tudo em chamas: aquele ponto, no leito dos rios, onde remansam as águas; o cesto feito de taquara; o vinho negro e forte; o sentimento que nasce do contato com episódios gratuitos – seja a dor, seja a alegria – tudo em chamas. A lâmina da morte abrasa a iguana e a reduz a cinza. Imersa em profunda fonte fria, Lucana, na cama de chuva, os olhos macios e perdidos, escuta, com órbita teimosa de bicho calado, que, segundo Petrarca, “...de um polido e vivo gelo provém a chama que a calcina e a destrói e tanto as veias resseca e a alma esboroa...”, que, invisivelmente, ela se degela. Lucana, a senhora do gelo, desvela nos búzios que a existência do céu apenas demonstra que somos ossos, não existimos, e só o céu dura na pura claridade matinal.

Lothar Osterburg, 2003



Zeppelin sobre Timbuktu
.
A BARCA DOS LOUCOS

Os vocábulos são características das coisas.

Cícero


Nunca respiram nesse poema,
aqui alinhavado na página fria,
os vocábulos "a", "barca", "dos", "loucos".
Inexistem, somem depois de pronuncidos.

Contudo, sem os vocábulos
"a", "barca", "dos", "loucos",
de que modo vislumbrar
a
barca
dos
loucos?

Em nenhuma circunstância
esqueças o célebre dictum:
em literatura não há nada escrito.

Anon, 1890

Em mim alma de barro cru e, claro, eu preferiria residir num harém, --- harém aquático --- sem estorvo do areento. O linho alto das nuvens em queda agora: águas águas águas. O coração esquecido no aguaçal. O fero, em mim, transparente leão branco, que é manso e silente. Eu tranqüilo numa das camas do harém aquático, e, a cada vez que se entreabre a porta azul, fulge a asa do anjo antiqüíssimo e o açude de uma Sibila antiga escuta a pele minha em chamas. Se abre outra vez a porta azul: ave-do-paraíso, com sede, me olha.

Anon, 1932

ORIKI

Quando o filósofo Mo tsi apodreceu, pôs-se no túmulo a saborear nuvens caídas na carapaça do rinoceronte: viu mar no alto do eucalipto. Viu frase de garoa na guelra do salmão. No nojo em que se viu imerso, banhou-se todo em fedor e ácaros: quis desfiar o rosário de buirás na chuva, quis sonhar de orvalho o rinoceronte. E, durante o apodrecimento seu, no túmulo sonhou linhagens aquáticas: estava próximo da vegetação dos ventos, estava uma barca na nevasca, sua alma acendeu um oriki.

Saramago.
Ver o
Caderno de Saramago

http://caderno.josesaramago.org/