sexta-feira, 17 de abril de 2009

Theo Frey, 1955

Não há século novo

nem luz recente
apenas um cavalo azul

e uma madrugada.

Federico García Lorca

Cara amiga,

eu acredito muito no poder onírico: eu penso que devemos acordar do estado de vigília (onde o mundo externo vigora). No estado onírico podemos voar com uma árvore perfumada nas mãos; quando acordamos vemos a árvore, e não estamos mais voando nem a árvore é perfumada: e isto torna as coisas, de certa maneira, chatas ou desesperadamente enfadonhas. Por isto devemos despertar, não do sonho, mas do estado de vigília (onde o mundo externo vigora). Aprender a retomar a potência do onírico, disto já falava o Nietzsche em sua teoria filosófica do Eterno Retorno.


Contudo, há um outro estado, anterior à vigília, que se chama o Deus ou Algo: eu creio firmemente que o Deus ou Algo é quando a luz que temos (ou consciência) ilumina, alumbra, aclara a escuridão. A luz não apodrece. A luz não pensa. A luz, em latim dies: daí vem a palavra dia e a palavra Deus; Deus que é luz, não deste mundo, nem do outro.


Freud foi um divisor de águas no século 20, porque ele descobriu que, no tal do Inconsciente ou Deus ou Amor, só há sim.


O não vem do ego, do que há de mais podre em nós, do ditador que há em nós, que diz que a potência da vigília (o mundo externo) é mais eficaz que a potência onírica. O ego é aquele que diz, todos os dias, que um poema não vale nada; que um passo de dança não vale nada; que uma escultura do Aleijadinho não vale nada; que uma linha de Paul Klee não vale nada; que uma suíte para violoncelo de Bach não vale nada.


Por isto devemos esvaziar o ego. O único poder do ego é reconhecer que não tem poder algum: e isto é reverência, humildade, ou deixar que as coisas fluam. Paul Valèry sugeriu: "Devemos ajudar a Hidra a esvaziar seu nevoeiro".


Numa sala, se alguém disser que há um cavalo azul esvoaçando, sabemos que só as crianças o verão (quiçá alguns velhos). Ninguém entra no Reino se não se tornar criança (não no sentido de tamanho ou idade), mas criança no sentido de se abismar no lúdico, no abismo livre das águas e ver as coisas com olhos novos e retinas enxaguadas pela chuva.


E se, no estado de vigília, praticamos o estado onírico, aí somos artistas e, quanto mais artistas, mais conscientes. Outro dia eu imaginei que um leão de fogo passava próximo de minha xícara de chá e, nela, esquecia sua sombra vacilante. Eu não via o leão de fogo, apenas sua sombra na xícara de porcelana branca. Claro: nem o leão de fogo nem a xícara de chá nem a sombra existiam no estado de vigília; eles existiam, somente, no estado onírico. Quando me refiro ao estado onírico, falo também da glândula pineal, cuja função em nosso cérebro é ver; a glândula pineal é o nosso terceiro olho --- nosso olho védico --- o Olho do Deus ou do Algo: Aquele que tudo sabe e de quem nada sabemos, porque conhecer o Deus ou Algo é conhecer-nos. Através da glândula pineal podemos ver com os olhos fechados tudo o que há no mundo vasto mundo; e, assim de olhos fechados, recordar do mar, do vento, das barcas; rememorar a nossa origem primordial e nossas outras origens que tais.


O amor é um sim primordial; o Deus é sim, nunca não; a não ser que este não seja para o ressentimento; a tristeza, a mentira; a violência: o desamor.


Devemos despertar do estado de vigília, não do estado onírico. No estado onírico podemos ser tudo, a cada milésimo de segundo. No estado de vigília vivemos sob o tacão da ignorante selvageria; humilhados pelo grilhão da mesmice; imersos em baboseiras e cotidianos aviltantes. No estado onírico eu posso fazer comigo e com quem amo o que a primavera faz com as cerejeiras; posso, igualmente, lamber o sal de todo o corpo daquele Ser que adoro e ciciar em seu tímpano a ondulação dos capinzais do Ceilão. Ver as coisas externas com a potência do estado onírico, eis a arte e a condição humana. No estado onírico curamos chagas com apenas passar a nossa língua de bálsamo nelas. Precisamos cuidar das coisas do Espírito (as coisas do estado onírico) e o resto nos será dado de acréscimo. No estado de vigília ficamos na cama dos hospitais. No estado onírico somos pássaros; no estado de vigília somos deputados, gerentes de banco, burocratas da pior espécie. No estado onírico somos jazz do coração: um improviso só; algo novo; inédito, não combinado.


Por isto viemos à Vida: para reverenciar o Deus que há em nós; o Deus paradisíaco enamorado pelas obras do tempo: um cabelo, um sorriso, um cálice de vinho; um barco que singra em torno da ilha.


Eu creio em poucas coisas, minha amiga; eu apenas creio que o Deus precisa de nosso pobre coração para existir. Devemos ser reverentes à potência do estado onírico e despertar as forças oníricas latentes. Por outro lado, devemos despertar do estado de vigília, enriquecendo a vigília com leões de fogo, deixando-a fluir musical.


Somos deuses quando nos abandonamos ao mistério.

Matheus, meu filho

Josef Sudek, 1950

A noite acaba feito gim. O senhor K. não é uma criatura débil como uma haste de verbena; e até afirmou, em determinada ocasião, que o excesso é fundamental; que o excesso leva ao Castelo da Pureza; disse, igualmente, que a vida lhe fugia em cada sopro que vazava dos lábios finos do destino. Tinha um olhar, o senhor K., de ser gerente do The Bay Hotel --- mas ele é o gerente do The Bay Hotel ---, apenas esqueceu por um instante. Seus primeiros pensamentos da manhã já se parecem com os seus últimos pensamentos do dia. A cabeça, a do senhor K., mais bruta do que a cabeça do açougueiro Hamm. Apenas o tédio é, nesse meio-dia de verão, mais bruto, e cáustico. Não aspira, o senhor K. não aspira nunca ao céu. Como Orfeu, parece que está sempre recolhendo no vaso da alma, a um só tempo, um sáurio gravemente ferido e uma deusa com tímpanos de chuva. A noite acaba feito gim. Foi sugerido ao senhor K. que, entre as cinco irmãs — escolhesse uma—, e o senhor K. apontou para Joana, a única a quem a natureza tinha dado todas as rosas do amor. Todas as outras quatro irmãs mais pareciam ter seiva de areal, isto é, eram secas. Eu convido Joana para as fadigas de uma noite de núpcias ou o lúbrico serpentário da língua na nuca. Joana, a boa menina, lânguida após um copo de gim ou mais lânguida se o senhor K. tenta acariciar o musgo molhado entre suas coxas. A noite acaba feito gim. Joana guarda no relicário íntimo a sua fragilidade e a razão de preferir uma Cassiopéia boreal a uma longa temporada no Gehenna fumegante; entre ácaros e lesmas, entre chifres e cascas de cigarra. Um sopro inaudível conta à Joana que ela sabe mais que as plantas e os peixes; que ela sabe mais que os santos. Joana morena, olho verde, cabelo comprido. Por causa dela o galã da noite --- o senhor K.--- poderia até entoar antífonas religiosas na Ilha da Ilusão ou, após beber litros de gim, cairia de língua nas peles, nos pêlos dessa Joana de circunstância --- dessa mulher que enxágua retinas --- e se entrega, de quatro, feito uma piscina molhada, ao senhor K.. A noite acaba feito gim.

Todd Webb, 1945

Sou incrédulo, mas tenho um pequeno negócio – A Loja dos Aquários – na rua dos Olivos, 22. Eu, que recendo a chifre, de vez em quando abro, a facão, uma clareira no capinzal atrás do sobrado onde passo os dias. Pela janela envidraçada gasto os olhos, e não consigo ler o nome do barco parcialmente apagado pela ação das ondas. Ela guarda um talo de chuva na língua. Ela sai de baixo do guarda-sol branco, bate a toalha para que os grãos de areia despeguem; anda, quieta, e cobre a cabeça com o mar. Ela é escritora; finge ser uma das três belas de Edo. Eu sou musicista e também pratico – toda quinta-feira – o kyudô: o caminho do arco. Ela, na esquina sempre ventando, vive num casario colonial do século 19 e lá vai fumaça. A distância entre o meu sobrado e o casario dela é de 100 metros. Nada nunca soube, antes eu sou – poucos aceitam esse fato – eu sou o autor, o verdadeiro autor de alguns textos atribuídos a outros escritores. “Este segundo desapareceu para sempre”, leio aqui num tomo de Cioran. Tudo é insignificante. Não perder de vista as entranhas do inescrutável. Folheio uma anotação de Nietzsche: “A percepção final possível para uma raça já está implícita em seu primeiro mito religioso”. Esse lugar onde eu e uma das três belas de Edo confluímos; o nome desse lugar é Candelária, cortado por um ribeirão de água potável. Ela tem algum domínio dos rudimentos da língua catalã. Ela cheira cocaína pura se nas calhas do casario colonial águas da chuva. Ela enfia não sei o quê entre as coxas: talvez uma enguia do mar Adriático. Isso mesmo: ela phode com uma enguia. No quarto dela a luz morna do abajur não emite um “a”. A noite acaba feito gim. Eu aprecio muito escutar as máquinas da lavanderia. As noites eu as passo em claro – soníferos, analgésicos, cortisona – e nada: a dor vigora ainda mais nesse nervo exposto; dor mais suja que pau de galinheiro. Ela – uma das três belas de Edo – recebe o vento de Candelária para o chá – tea for two – jazz do coração: prosa que dá água na língua. Eu também prefiro dar as caras na rua. Vivo recluso num caramujo com meu mofo à espera do inevitável desenlace. A barca com sua grande vela de bambus; a imagem de um junco chinês no mar. Não sei por que cargas-d’água penetrei surdamente essa rua sem saída. Um balaio cheio de mangas, eis o que ela deixou na soleira do meu sobrado. No casario colonial dela esqueci um cesto de carpas. A noite acabou feito gim. O gim acabou; o gelo; e eu busco uma morte de luz que me consuma, enquanto espanco os ossuários com um ramo de chuva. Uma das belas de Edo é uma engolidora de fogo; engole o fogo dessa manhã que ferve. Não vê a hora, ela, de entornar na língua um tonel de água.