terça-feira, 19 de maio de 2009

E. O. Hoppé, 1926

A iguana em meio ao juncal é bom, o salmo 69 não é mau. Sem ser da mesma linhagem que a do salmo, aquela em Villa da Concha, segundo me confidenciam, é Lucana na Casa de Água. Ela vai grafando linhas vazias no dorso escamoso da iguana. Ela --- água de chafariz --- que cai aquática e ressuscita aquática. Folheia o missal das pedras, e particularmente a brisa. Possui a técnica de o fazer, do missal das pedras, uma gravura de fino cristal. Lucana retorna à Casa de Água onde reside, entre azulejos da parede, arcas-de-ferro e mandacarus do sertão. Ela e o suntuoso vendaval. Uma neblina se dissipa. A partir de um átrio aberto, espia-se a monotonia da Casa de Água. Jorra o cântaro a gramática líqüida ou o fluxo solar da indecisão aquática. O peixe principia a feder pela cabeça. Casa de Água principia a clarear pelas telhas. Se o peixe é de pedra nunca fede. A partir de um átrio aberto, erra a epifania, não em lavanda, mas em cacto ou apenas arabesco de cacto. Logo na entrada se vislumbra o crânio de uma vaca com rosas da caatinga e um árido chão. Lucana abana moscas, vocifera claros nomes serenos. Simplificada a Casa de Água até o rigor franciscano de uma gravura de Balthus, e onde por único adorno, além de tomos de Xenofonte numa estante de cedro, há cactáceas em púcaros de barro. A um recanto do living Lucana, a ler duas folhas de prosa, aproxima da talha das abluções o lado amargo da língua, depois vai regar o silêncio do Jardim de Pedra, vai regar o jasmineiro, o corvo, o biombo de fino papel japonês, a âncora. Com o viscoso lodo das palavras, com o granizo e com a nevasca das impressões verbais, desvela-se a seqüência harmônica da Casa de Água de Lucana, casa que é um sonho onde não se dorme, sonho vivo, fora do sono, entrelaçado silêncio de cacto e sopro. Jardim de Pedra que a raga indiana rega, também cheira a Vazio e viço de alecrim. Tudo está em chamas: a retina, a coróide, a alta árvore na audição de Orfeu. Tudo em chamas: aquele ponto, no leito dos rios, onde remansam as águas; o cesto feito de taquara; o vinho negro e forte; o sentimento que nasce do contato com episódios gratuitos – seja a dor, seja a alegria – tudo em chamas. A lâmina da morte abrasa a iguana e a reduz a cinza. Imersa em profunda fonte fria, Lucana, na cama de chuva, os olhos macios e perdidos, escuta, com órbita teimosa de bicho calado, que, segundo Petrarca, “...de um polido e vivo gelo provém a chama que a calcina e a destrói e tanto as veias resseca e a alma esboroa...”, que, invisivelmente, ela se degela. Lucana, a senhora do gelo, desvela nos búzios que a existência do céu apenas demonstra que somos ossos, não existimos, e só o céu dura na pura claridade matinal.

Peter Miller, 1995

Imersa nas águas tu és, bem-amada, em meio às narcejas, um Deus escondido. De tal modo serenada, que o sopro de teus olhos desarruma oceanias. Te ofendo com apitos, meu deus, com pratos de plantas, para que aprendas a inutilidade do céu. Há mais pensamentos que coisas. Fico miosótis para o fim, desaprendo a ira para pra te convencer que a morte não existe: essa pirataria sepulcral é só um jeito de brincar de sumiço. Te convenço que aqui no centro se unge com boana. Balanço cabeleira só pra ofender, meu Deus. Com cachaça feroz eu espicaço tua alma, parto em duas tua espinha dorsal e te espanco até que caias numa cama de suave pena de cisne, os travesseiros de chuva serão apenas testemunhas secretas do quanto minha língua de fogo sabe o sabor de tua pele branca de neve.

Ante o mar azulado, na cadeira de praia, ela dormindo sonha com o príncipe da neblina que se aproxima de sua orelha esquece ali música verdejante. Certa mulher, mas não esta ou aquela, porque me refiro à que vive na ilha do Arvoredo – nas noites perigosas – é música atravessando o muro.

A escrita incita o linho.

A poesia é quando estamos andando sobre o dorso de peixes dourados e alguém nos entrega um livro justo na página 61 onde está escrito que não há palavra de adeus para os flocos de neve que se fundem à brancura do campo.

As ervas do jardim. A voz rasga o céu, a raga indiana rega as ervas do jardim – pairo acima de salsos pendentes.