quinta-feira, 11 de junho de 2009

Barbara Morgan, 1940

A pitonisa pronuncia que está nevando no outro lado do nada


Sonho que sou uma tempestade perfeita lá no alto, mas, cá embaixo, próximo do cotidiano de um copo d'água e de uma folha que cai, sei que pareço mais a um pequeno sopro de chuva na vidraça e aprendi, nesses dias em que reverencio uma planta bravia que eu chamo de A., aprendi que de ar sou e me interessa muito o que a pitonisa pronuncia perto da veneziana, e ela pronuncia que está nevando do outro lado do nada, e também me diz que posso, ainda, espiar a restinga, sim, eu aqui nesse hotel Continental à beira do azul-mar-grosso-de-sal, em pleno século V dos leões transparentes, eu, durante a sagração dos oráculos, sou aquele que escuto atentamente a pitonisa consagrada, a mesma que pronuncia tudo e tudo sabe e devasta um quarteirão com apenas um suspiro seu ou um andar pelas tábuas do quarto. E, quando anoitece nas grutas, nos pulmões e nos sentimentos indecisos, a pitonisa se desnuda até da pele nua e, agora, a planta bravia que eu chamo A. tem uma cútis de Palmolive e sonha que a tempestade guarda entre as coxas uma claridade que não é desse mundo nem do outro. Ela enche os terraços de músicas, de buracos, de árias, de legiões: sua língua não passa de ar, mas um ar que deleita até mesmo aqueles que sorvem cianureto porque eles têm nostalgia das noites molhadas quando um corpo penetra num corpo alheio: água na areia. Mesmo se eu tivesse a alma rasa e inquieta, a pitonisa viria pra chorar uma estrela em meu tímpano, e também ela viria pra revelar que a única coisa que existe nesse mundo é uma sereia de cabelo azul, e esse cabelo azul traz à tona um saber vasto e profundo, para enfim aprendemos que só escapamos do pó se estivermos atentos à respiração da planta bravia A.: porque diante dela curva-se o que em nós apodrece e, se o desejo for mais fundo no escurento, e se nada temermos da tempestade, a tempestade estará em nós sonhando, e quanto mais no alto formos a chuva, mais acordamos do sonho e penetramos no hall do hotel Continental pra descansar naquela cama com aquela pitonisa agarrada à planta bravia A. que pronuncia o oráculo delicado: não somos nada – as palavras – mais fortes que cada um de nós!

Araki Nobuyoshi, sem data

João


Perci


Schiavon



A educação pelo sim


Iluminando palavras e essências, João Perci Schiavon – um dos mais expressivos psicanalistas do Paraná – traz à tona algumas questões: a borboleta de Chuang-tsé, o ouro fundo da palavra, a importância de bem-dizer o mal-dito e a verdade como peça essencial para o desvelamento do que no indivíduo é seu lugar de estrela.


Entrevista a Fernando José Karl

NautikkonOs gregos têm uma etimologia interessante onde psique significa, também, “borboleta”, numa referência à fragilidade. O que é a psique, afinal, para você?

João Perci Schiavon – A propósito da borboleta, há uma historieta que Lacan menciona num de seus seminários: a do sábio chinês Chuang-tsé, que sonha ser uma borboleta e, ao acordar, se pergunta se não é ele mesmo um sonho da borboleta. Lacan talvez se reportasse a algo que é fundamental em psicanálise, presente desde o início da obra de Freud – a concepção de lugares psíquicos. Toda a noção de inconsciente envolve essa idéia de localizações psíquicas, que são responsáveis pela questão: desde onde se fala?, quem é falado e quem fala? Isso aparece de modo bem essencial na fórmula freudiana wo Es war soll Ich werden, que se traduz por “lá onde isso era devo eu vir a ser”, e que determina eticamente (soll Ich) um percurso do sujeito e um lugar originário, correlato de um tempo perdido. Esse tempo perdido é o tempo como tal. Talvez, as metamorfoses da borboleta, desde o estado de larva, o casulo-sarcófago e sua expansão voejante, evoquem as estações do sujeito e uma espécie de imortalidade no tempo redescoberto.


Nautikkon E onde entra a fragilidade nisso tudo?

Schiavon – É uma fragilidade bem paradoxal, pois isso que parece frágil e sutil determina os eventos da realidade mais substancial, mais consistente, da realidade física mesmo. A psique é pensada como frágil em virtude de não ser corpórea, mas não deixa de ter uma realidade que, do ponto de vista freudiano, é suposta como extensa. A espacialidade era, para Freud, uma projeção da psique.


NautikkonDurante uma sessão de psicanálise, o estado de atenta observação do outro pode acordar um deus dentro do analista?

Schiavon – Não considero o deus de sua pergunta e deixo-o lá, no horizonte. O analista deve ter uma não-idéia e uma não-imagem do outro que mantenham o campo suficientemente aberto à manifestação de uma diferença essencial. É uma atitude amorosa, essa do analista, por acolher o que quer que o outro venha a dizer, para que venha à luz o que deve vir. É um silêncio radical, operando na raiz do verbo. Não que ele não vá falar, mas sua posição é tal, no sentido do ethos de que eu falava, que quem há de se pronunciar é o sujeito do inconsciente.


Nautikkon E quem é o sujeito do inconsciente?

Schiavon – É o verdadeiro, o que corresponde ao inconsciente à maneira freudiana, onde não existe o tempo, nem o não, e onde não vigora o princípio de contradição. Então, é o sujeito da afirmação, da firme-ação, o sujeito atemporal que domina, com saber ancestral, a lógica do significante, sua sincronia, entendido que o significante envolve sempre uma equivocidade: posso dizer algo enunciando o contrário, e dizer duas coisas ou mais, inclusive opostas, ao mesmo tempo, para além da sucessão temporal. É bem significativa, em relação a isso, a abordagem de Freud das palavras de duplo sentido antitético nos idiomas primitivos. Há um saber primevo no fato de altus significar tanto alto como profundo, e em sacer traduzir-se por santo e, ao mesmo tempo, abominável. O sujeito que domina essa equivocidade, situado na linha do puro diferencial, tendo mestria aí, é o sujeito do inconsciente.


Nautikkon Sendo a verdade peça essencial do processo psicanalítico, como ele se encaixa nesse processo?

Schiavon – Como o essencial, mesmo. Toda a análise gravita em torno da verdade. Lacan, numa apresentação célebre na TV, sustentou que dizia a verdade, mas não toda ela, porque é impossível dizê-la toda, faltam palavras. Tomando essa referência, convêm pensar que é no mesmo sentido que a análise e a vida são intermináveis e que há essa impossibilidade de dizer toda a verdade, que há sempre mais a dizer. Mas se trata, então, de dizer a verdade da melhor forma possível, a mais integra, o que equivale também a transmitir a vida da melhor possível, bem-dizendo. O dever de transmissão da psicanálise reside aí.


Nautikkon Como a psicanálise vê a morte, a ressurreição? Guimarães Rosa escreveu: “A gente não morre, fica encantado”. O que você tem a dizer sobre isso?

Schiavon – A verdadeira morada do homem, no que se refere à sua humanidade, é a linguagem. Morada, insisto, tem a ver com ethos, o lugar da constituição. É por isso que em qualquer cultura e em qualquer tempo, quando se trata da origem do sujeito, sempre se conta uma história que tem significação para esse sujeito, como sucede com o fantasma ou a fantasia inconsciente na psicanálise. As fantasias inconscientes são histórias que têm validade o tempo todo, mas é preciso atualizá-las, reconstruindo-as. O que tem validade o tempo todo é o que não cessa de acontecer: quando um mito é vivo, ele não pára de ser repetido, redito, transmitindo uma origem que não cessa de se colocar novamente. Isso que não cessa tem um valor infinitivo, pois não encontrou sua efetuação de uma vez por todas. Então não pára de acontecer, e é por isso que não se morre, fica-se encantado, porque isso se passa na dimensão do verbo. A prova é a palavra: não há nada que guarde, como ela, a continuidade ou o sentido da vida.


Nautikkon Uma frase famosa de Lacan diz que a função do processo analítico é transformar o mal-dito em bem-dito. Como você vê isso?

Schiavon – Talvez você se lembre da cena do filme O Último Tango em Paris, em que os protagonistas se deparam com a realidade de um rato morto e com a condição psíquica necessária para admiti-la, tocá-la. É a via amorosa que está sendo considerada, suficientemente poderosa, soberana, para se haver com o que quer que seja. Freud dizia que a análise de um sonho visava incluir na concatenação psíquica oficial, legal, os elementos psíquicos desqualificados e excluídos como inconvenientes. Sabe-se o quanto a vida pode ser experimentada como inconveniente. Mas há algo mais nessa idéia de inclusão: Freud observa que, ao permitir que os pensamentos involuntários da associação emerjam, eu os torno todos voluntários. Eu os bem-digo, no sentido da afirmação. Mal-dito é o que se encontrava excluído, apenas reconhecido do lado de fora; fundamentalmente desconhecido, se tornara estranho. A reintegração opera no sentido de uma integridade ética, pois não devo desconhecer por mais tempo meus mal-dizeres, e é mesmo a nível do verbo que isso é possível, é a palavra que traz o que se havia perdido, expatriado. Em alemão, a palavra poesia, Dichtung, evoca condensação, termo caro a Freud na elucidação do trabalho onírico. O bem-dizer tem essa virtude de reunir o que estava disperso e separado, de fazer elos, ordenar o caos, e revelar aí uma pátria. É poeticamente, dizia Hölderlin, que o homem habita esta terra.


João Perci Schiavon (pronuncia-se Pérci), 54, nasceu em Curitiba/PR, é psicanalista. Escreveu dois livros: O caminho do campo analítico (Travessa dos editores) e A lógica da vida desejante (Criar Edições).

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