quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Ver 7 photos
de Betti Mautner,
todas tiradas
no anno de 1918.

Martin Parr, sem data

“É perfeitamente pensável que o esplendor da vida circule por toda parte, e sempre em toda a sua plenitude, acessível mas velado, profundo, invisível, longínquo. Mas ele está ali, sem hostilidade, sem relutância nem surdez. Com a palavra certa acode ao chamado. Essa é a essência da magia, que não cria, mas convoca”. Depois de ler o aforismo acima de Kafka, partir a torrada em duas e beber o café, Lucana olha para a janela com vidraças azuladas de seu quarto. Leva um susto e argumenta em silêncio: “Não, não é uma foice, é apenas a cortina”. Fica olhando a cama desarrumada, desnuda-se, as águas do chuveiro choram desesperadas e ela só tem tempo de pensar que nunca havia tocado a pele de K. O sabonete Phebo recende aroma de noite sossegada por toda a casa. Também o mantra recende, que Lucana entoa: “Tadyatha om gate gate paragate parasamgate bodhi svaha”. “É assim, avance avance, vá adiante e transcenda, vá diretamente adiante, firmemente enraizado na iluminação”. Ouro nos cactos que circundam a Casa de Água: crótalo, crótalo, crótalo. Folha de hortelã no chá frio. Lucana morde conchas finas. No domingo recalcitrante o fresco de águas indo entre galhadas e pedras. Lucana sorve, para assombrar o assombro: ouro-crótalo, fina água de goivo, um risco de lágrima na concha. Adoça a espinha do peixe no cantábile que vaza do gramofone e se derrama nos tímpanos. O que salva é escrever nesse estado de óbvia distração, encostado à inclinada palmeira musical que torna mais suportável a banquisa.

Henry Fox Talbot, sem data

A CHINESA DE CABEÇA PARA BAIXO

Penduro a chinesa de cabeça para baixo
depois que a torci, dela vazou água
penduro a chinesa de cabeça para baixo
eu mordo conchas tão finas
a chinesa, de cabeça para baixo,
morde conchas comigo
a brisa esvoaça a frágil chinesa
que não entontece mesmo de cabeça para baixo
eu nem diria que ela respira
eu nem diria que ela é morta
a toalha secando ao vento estival:
a efígie da chinesa na toalha de banho

Elliott Erwitt, sem data

OS OLHOS DO ADORMECIDO

Esfinge ao sol, enquanto durmo.
Se eu acordasse agora, então o quê?
Um olho aberto, outro fechado,
a esfinge sonha com meus olhos.

Meus olhos nessa luminância
dos olhos da esfinge de cal.
Meus olhos são alísios, alívios
nos olhos da esfinge no pátio.

Esfinge apagando altas estrelas,
que depois meus olhos reacendem.
E por que esfinge, por que olhos?

Seria mais simples não haver vida
– nenhuma palavra –
seria mais simples não morrer.

Clara Whitcomb, 1898

AXAXAXAS MLÖ

O título desta narrativa – Axaxaxas mlö – pode, à primeira vista, parecer incoerente e passível de uma correção tipográfica.

Até as mulheres foram banidas da ilha de Axaxaxas mlö, que cultua uma economia de sentimentos, o que a faz parecer fria e calculista ou mesmo uma ilha insuportavelmente tediosa. O certo é que, para Axaxaxas mlö, são deportados ladrões e estupradores.

E, sem dúvida, também aqueles que não praticam a pureza com ferocidade.