Cara amiga,
eu
acredito muito no poder onírico: eu penso que devemos acordar do estado
de vigília (onde o mundo externo vigora). No estado onírico podemos
voar com uma árvore perfumada nas mãos; ao acordar vemos aquela árvore
no quintal, só que não estamos mais voando nem a árvore é perfumada;
isto é o que torna as coisas, de certa maneira, chatas ou
desesperadamente enfadonhas. Por isto devemos despertar, não do sonho,
mas do estado de vigília (onde o mundo externo vigora). Devemos aprender
a retomar a potência do onírico; isto já falava o Nietzsche em sua
teoria filosófica do Eterno Retorno.
Contudo
há um outro estado, anterior à vigília, que se chama o Deus ou Algo: eu
creio firmemente que o Deus ou Algo é quando a luz que temos (ou
consciência) ilumina, alumbra, aclara a escuridão. A luz não apodrece. A
luz não pensa. A luz, em latim dies: daí vem a palavra dia e a palavra Deus; Deus que é luz, não deste mundo, nem do outro.
Freud foi um divisor de águas no século 20, porque ele descobriu que, no tal do Inconsciente ou Deus ou Amor, só há o vocábulo sim.
O
não vem do ego, do que há de mais podre em nós, do tirano que há em nós
e que diz que a potência da vigília (o mundo externo) é mais eficaz que
a potência onírica. O ego é aquele que diz, todos os dias, que um poema
não vale nada; que um passo de dança não vale nada; que uma escultura
do Aleijadinho não vale nada; que uma linha de Paul Klee não vale nada;
que uma suíte para violoncelo de Johann Sebastian Bach não vale nada.
Por
isto devemos esvaziar o ego.O único poder do ego é reconhecer que não
tem poder algum: e isto é reverência, humildade, ou deixar que as coisas
fluam. Paul Valèry sugeriu: "Devemos ajudar a Hidra a esvaziar seu
nevoeiro".
Numa
sala, se alguém disser que há um cavalo azul esvoaçando, sabemos que só
as crianças o verão (quiçá alguns velhos). Ninguém entra no Reino se
não se tornar criança (não no sentido de tamanho ou idade), mas criança
no sentido de se abismar no lúdico, no abismo livre das águas e ver as
coisas com olhos novos e retinas enxaguadas pela chuva.
E
se, no estado de vigília, praticamos o estado onírico, aí somos
artistas e, quanto mais artistas, mais conscientes. Outro dia eu
imaginei que um leão de fogo passava próximo de minha xícara de chá e,
nela, esquecia sua sombra vacilante. Eu não via o leão de fogo, apenas
sua sombra na xícara de porcelana branca. Claro: nem o leão de fogo nem a
xícara de chá nem a sombra existiam no estado de vigília; eles
existiam, somente, no estado onírico. Quando me refiro ao estado
onírico, falo também da glândula pineal, cuja função em nosso cérebro é
ver; a glândula pineal é o nosso terceiro olho – nosso olho védico – o
Olho do Deus ou do Algo: Aquele que tudo sabe e de quem nada sabemos,
porque conhecer o Deus ou Algo é conhecer-nos. Através da glândula
pineal podemos ver com os olhos fechados tudo o que há no mundo vasto
mundo; e, assim de olhos fechados, recordar do mar, do vento, das
barcas; rememorar a nossa origem primordial e nossas outras origens que
tais.
O
amor é um sim primordial; é fluido integrativo; o Deus é sim, nunca
não; a não ser que este não seja para o ressentimento; a tristeza, a
mentira; a violência; o desamor.
Devemos
despertar do estado de vigília, não do estado onírico. No estado
onírico podemos ser tudo, a cada milésimo de segundo. No estado de
vigília vivemos sob o tacão da selvageria, humilhados pelo grilhão da
mesmice, imersos em baboseiras e cotidianos aviltantes. No estado
onírico eu posso fazer comigo e com quem amo o que a primavera faz com
as cerejeiras; posso, igualmente, lamber o sal de todo o corpo daquele
Ser que adoro e ciciar em seu tímpano a ondulação dos capinzais do
Ceilão. Ver as coisas externas com a potência do estado onírico, eis a
arte e a condição humana. No estado onírico curamos chagas com apenas
passar a nossa língua de bálsamo nelas. Precisamos cuidar das coisas do
Espírito (as coisas do estado onírico) e o resto nos será dado de
acréscimo. No estado de vigília ficamos na cama dos hospitais. No estado
onírico somos pássaros; no estado de vigília somos deputados, gerentes
de banco, burocratas da pior espécie. No estado onírico somos um
improviso só, algo novo, jazz do coração
Por
isto viemos à Vida: para reverenciar o Deus que há em nós; o Deus
paradisíaco enamorado pelas obras do tempo: um cabelo, um sorriso, um
cálice de vinho; um barco que singra em torno da ilha.
Eu
creio em poucas coisas, minha amiga; eu apenas creio que o Deus precisa
de nosso pobre coração para existir. Devemos ser reverentes à potência
do estado onírico e despertar as forças oníricas latentes. Por outro
lado, devemos despertar do estado de vigília, enriquecendo a vigília com
leões de fogo, deixando-a fluir musical.
Somos deuses quando nos abandonamos ao mistério.
Abraço
do
Fernando José Karl